“Mudo é quem só se comunica por palavras”

Nos anos 1930, a primeira escola de samba, a Deixa Falar, localizada no bairro do Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, vivia um momento de crescimento, com mais e mais gente saindo às ruas no dia de desfile. A expansão trouxe consigo um problema: nem todos os foliões conseguiam ouvir a música que estava sendo tocada. Com intenção de resolver este problema, o compositor Alcebíades Barcelos, o Bide, lançou mão de suas habilidades técnicas como sapateiro e “encourou” uma lata de manteiga de 20 quilos com papel de saco de cimento umedecido, atando-o à lata com arames e tachinhas. O resultado desta operação é a invenção do surdo, um tambor de som grave que não apenas solucionou a problemática acústica inicial como, ao lado do tamborim (também introduzido por Bide) e da cuíca (trazida por João da Mina no mesmo período e no mesmo Estácio de Sá), efetivamente reformulou o samba para sempre.

Até então, o samba, era executado em um balanço brejeiro e lento, com influências do scottish, da polca, da tangada argentina e principalmente do maxixe, conforme ouvimos em “Pelo telefone” (1916), música de Donga convencionalmente citada como o primeiro samba gravado em disco. Bide, João da Mina, Ismael Silva, Brancura, Marçal, Nilton Bastos e outros compositores do Estácio, munidos do surdo, tamborins, cuícas, pandeiros e chocalhos, foram os responsáveis por desenvolveram a linguagem sonora do samba urbano carioca, o “samba de sambar”, composto por notas mais longas, andamento mais rápido e cadência marcada enfaticamente.

Num primeiro instante, esta reelaboração musical nasce das demandas produzidas pela nova espacialidade daquela emergente escola de samba, isto é, da aceleração do ritmo pedido pela música de rua e pelos corpos que acompanhavam a festa ocupando as ruas, escadas, becos e praças cariocas, inventando desta forma o espaço público. Utilizando-se de aguçada sensibilidade prática, de um conhecimento orgânico, Bide, Ismael e os demais desenvolveram uma expressividade sônica e corporal singular, sublinhando o improviso como prática humana inerentemente criativa. Entretanto, nas narrativas históricas e na crítica musical brasileira, o samba, quase contemporâneo da Semana de Arte Moderna de 1922, não é situado no âmbito da vanguarda, mas sim nos moldes de uma tradição nacionalista — não à toa temos a ideia do “samba de raiz”. Se por vanguarda entendemos a produção radical de novas perspectivas artísticas, por que essa disparidade então?

Em “Produção de presença: o que o sentido não consegue explicar”, o filósofo alemão Hans Ulrich Gumbrecht mostra como a modernidade, a partir do cogito cartesiano (“penso, logo existo”), desdobrou uma série de dicotomias filosóficas, tais como espírito e matéria, mente e corpo, profundidade e superfície, nas quais o primeiro polo (o sentido espiritual, hermenêutico, interpretativo) sempre possui privilégios e é considerado hierarquicamente superior ao segundo (que lida com materialidades, corporeidades).

Consolidada em um século de Iluminismo, essa visão de mundo cresce e fica mais próxima de nossa época, especialmente a partir de Martin Heidegger. Em resumo, o filósofo alemão argumentava que a língua grega era privilegiada, distinta das demais, por tratar-se da imagem original da filosofia. Evidentemente, na esteira dessa tradição hegemônica da “autenticidade grega”, Heidegger atribui à sua própria língua a condição de sucessora natural do grego, fazendo crer que o conhecimento do grego antigo, bem como do alemão, em si mesmo, dava acesso ao saber filosófico. No início do livro “Pensar Nagô”, o pesquisador baiano Muniz Sodré provoca: “O alemão ganha estatuto de logos e institui-se academicamente como língua original de filosofia, convertida em linha-mestra, senão em criadora da história europeia, por sua vez designada como Ocidente” — Caetano Veloso reflete essa condição em “Língua”, cantando que “está provado que só é possível filosofar em alemão”.

Apresentada como essência do Ocidente, esta suposta origem da filosofia aponta não só para desdobramentos meramente históricos, mas também políticos. Não é que as obras filosóficas acionam explicitamente o colonialismo imperial. No entanto, nestes sistemas de articulação do pensamento subjaz uma política. E a construção processual do logos e do conhecimento, circunscrita nos ditames do grego “germanizado”, ata o nó que une o poder de colonização europeu e o poder teológico das conversões de almas autorizadas ao cristianismo, ao mesmo tempo em que determina fronteiras para a produção do filosófica — quem está no território do pensar filosoficamente e os que estão à margem. A certidão do nascimento da filosofia na Grécia e sua exclusividade universalista é continuada na historiografia norte-europeia moderna, embasada em forte e oportuna motivação colonialista, racial e religiosa. Sodré reforça: “As tentativas modernas de limitar a possibilidade de afirmação de um pensamento filosófico ao interior dos muros simbólicos do Império Euro-Americano são embaladas, querendo-se ou não, por uma vontade de poder imperial e colonial, cuja linha de continuidade imaginária vai de Alexandre Magno até o império napoleônico”.

O humanismo dá espaço e até abriga a discriminação do Outro e, ao contrário do que o senso comum afirma, fornece suporte a todo racismo.

Essa vontade colonial transparece em textos de vários célebres iluministas. David Hume (1711-1776), por exemplo, escreveu: “Tendo a suspeitar que os negros, e todas as outras espécies de homem em geral (pois existem quatro ou cinco tipos diferentes), sejam naturalmente inferiores aos brancos”. E acrescentou: “Nunca houve nação civilizada de qualquer outra compleição senão a branca, nem indivíduo eminente em ação ou especulação”. Por sua vez, Kant continuou o argumento de Hume, enfatizando que a diferença entre negros e brancos “parece ser tão grande em capacidade mental quanto na cor”, antes de concluir, no texto de seu curso de geografia física: “A humanidade alcançou sua maior perfeição na raça dos brancos”. Voltaire (1694-1778), além de ter investido dinheiro no tráfico de escravos, em seu ensaio sobre a história universal (1756), afirmou que, se a inteligência dos africanos “não é de outra espécie que a nossa, é muito inferior”. Portanto, o que foi chamado de humanismo dá espaço e até abriga a discriminação do Outro e, ao contrário do que o senso comum afirma, fornece suporte a todo racismo. A ideia de “humanidade”, de “civilização”, é precisamente a fachada ideológica que legitima a pilhagem dos metais preciosos nas Américas e a escravização da mão de obra negra na África, contribuindo simultaneamente para sustentar o modo como o europeu conhece a si mesmo: plenamente humano, face aos demais povos, não tão plenos assim. Civilizados versus selvagens, cooptando outros povos em modelos coloniais já “civilizados”. Nos versos de Tom Zé, “Você inventa o pecado/ E eu fico aqui no inferno”.

Na proposição II do terceiro volume de sua “Ética”, Espinosa incita um pensamento sobre o corpo e a materialidade, criticando o cartesianismo moderno: “O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, a experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo – exclusivamente pelas leis da natureza enquanto considerada apenas corporalmente, sem que seja determinado pela mente – pode e o que não pode fazer”. Essa questão se adensa na negritude. Afinal, no funcionamento do mercado internacional de escravos africanos, o negro teve de ser transformado em não humano, instrumentalizado para servir de mão de obra ao capitalismo em fase de globalização — como vimos nos textos iluministas acima. Desumanizado, um sujeito-objeto, sem alma, destinado a servir e trabalhar. Diferentemente dos imigrantes dos tempos recentes, o negro escravizado não detinha nem mesmo a constituição moral de pessoa. Este processo é descrito por Achille Mbembe como “altericídio”, isto é, constituir “o Outro não como semelhante a si mesmo, mas como objeto intrinsecamente ameaçador, do qual é preciso proteger-se, desfazer-se, ou que, simplesmente, é preciso destruir, devido a não conseguir assegurar o seu controle total”. Diante deste quadro de dimensões históricas, políticas, culturais e subjetivas, é preciso abrir a roda do pensamento para desmantelar as dicotomias e pensar a partir daquilo que, até então, era um material tido como impensável. Uma racionalização diferente da ideia imóvel e transcendente, mas um pensamento-corpo, imanente e material.

A música afro-brasileira vem continuamente fornecendo bases para um pensamento incorporado que vai na direção contrária à direção da tradição filosófica que se orienta a partir da desvalorização do corpo, que enxerga o corpo como mortal aposento de uma alma imortal. Além da invenção do surdo pelos sambistas do Estácio nos anos 1930, outro caso emblemático é o Samba de Coco Raízes de Arcoverde. Criado em 1992 na cidade de Arcoverde, interior de Pernambuco, o grupo surgiu a partir de uma tecnologia sonora desenvolvida pelas mãos de Lula Calixto, finado membro fundador do grupo ao lado das Irmãs Lopes. Utilizando-se de suas habilidades de marceneiro e artesão, o músico e compositor confeccionou tamancos de madeira para a banda, encontrando no som das pisadas do tamanco e palmas de mão uma nova dinâmica percussiva, que, somado ao arranjo geral do ganzá, surdo, pandeiro e triângulo, imprimiu com ritmo mais pesado, vigoroso e acelerado à sua sonoridade.

Os tamancos de Lula Calixto transformam o próprio corpo em som através de um procedimento muito particular de biohackeamento.

Os tamancos de Lula Calixto transformam o próprio corpo em som através de um procedimento muito particular de biohackeamento. O corpo torna-se uma máquina rítmica, corpo-som que funda uma topografia sônica vertiginosa e complexa, acionando uma outra linguagem sensorial. Lula Calixto fez dos seus pés modos intensivos de escrita, escrevendo conceitos com suas pisadas de tamancos. Embora apartados no espaço e no tempo, estes dois momentos de invenção de materiais musicais — no nascimento do samba urbano carioca no Estácio de Sá dos anos 1930; e em Calixto e com o Coco Raízes — se conectam precisamente por gestarem novos mundos sensíveis, novas cosmologias sonoras articuladas através de um pensar incorporado: o pensamento-corpo. Pois, muito além de um simples ato artesanal, os instrumentos desenvolvidos por estes artistas nascem da experiência física/material dos músicos com o mundo ao seu redor. O pensamento caminho em direção imanente à vida. Distante do perfil especulativo, transcendente ou intelectual, aqui o pensamento opera como intensificação e movimento. É moto-contínuo, um movimento que positiva a experiência empírica sensível ao transmutar materiais cotidianos concretos em tecnologias musicais produtoras de novas subjetividades. Deste modo, pensar é uma atividade e desloca-se de uma crítica da vida para se tornar vivido nas materialidades. O surdo, o tantã, o repique de mão e os tamancos de madeira são operadores cognitivos conceituais que ampliam horizontes e oferecem outras possibilidades perceptivas. Os instrumentos são, enfim, novas tecnologias que em si engendram novos modelos sensoriais. O ponto não é a criação dos instrumentos propriamente, mas sim o que a criação dos instrumentos cria e potencializa: a proliferação das escritas de si e uma forma particular de cortar e crivar o caos.

Embora os dois exemplos aqui citados sejam fenômenos culturais usualmente lidos na chave da “tradição”, é importante reafirmar como suas práticas são essencialmente experimentais. O caso do samba do Estácio, por exemplo, nasce da recusa de ritmos e formatações disponíveis da tradução ou atualização do que foi herdado na fundação de uma nova música. No entanto, o samba e o coco — e arrisco dizer boa parte das culturas populares afrodiaspóricas ou melanodérmicas — foram historicamente capturadas pela concepção limitadora de “tradição”, esta por sua vez entrelaçada a um ideário de “arcaico”, “folclórico” e de “passado”, em oposição ao “moderno” ou “vanguardista”. Este raciocínio não apenas invisibiliza grandes saltos criativos como os citados, como também mata o dinamismo, a vivacidade e o fluxo criativo em nome de um historicismo infértil e condescendente que paternaliza e imobiliza essas culturas. E, em última instância, volta a silenciar a potência dos corpos.

Enquanto os filósofos cruzam os braços e se recusam a entrar na dança, a música propõe um deslocamento alegre e radical da nossa estrutura conceitual: saímos da voz ativa de sujeitos do pensamento para a voz média de sujeitos-objetos do ato de pensar-vivendo — em vez do viver pensando. Dizia Candeia: “Mandei meu dicionário às favas/ Mudo é quem só se comunica com palavras”.

Arte de capa: Laíza Ferreira @laihza

Publicado originalmente na ed.13 da revista Outros Críticos.

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GG Albuquerque Escrito por:

Jornalista e mestrando em Estéticas e Culturas da Imagem e do Som pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Trabalhou como repórter cultural do Jornal do Commercio e da Folha de Pernambuco, escreve o blog volume morto e colabora com a Vice Brasil, Portal Kondzilla e Outros Críticos.

Um comentário

  1. MARIA RITA RODRIGUES CONSTÂNCIO MENEZES
    1 de dezembro de 2020
    Responder

    Boa noite!
    Quero receber esse artigo.

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