
A voz não é linguagem, ela é considerada por muitos, em alguns aspectos, um sine qua non da linguagem e base do discurso (reator da palavra-discurso). Michel Foucault sempre nos aponta as consequências de certas interdições discursivas que acompanham a voz, como a palavra do louco que, até o fim do século XVIII, não podia circular como a dos outros e, por isso, era deixada de fora do círculo de debates sociais e ainda hoje é interdita. Existir necessita voz (não no sentido estrito da palavra), e por ela se expressam as palavras de ordem que, segundo Oswald Spengler, são as formas fundamentais da fala. Em minha concepção, a voz é muito mais que linguagem e vai além dos comandos simples que buscam aceitação, negação, testemunho ou obediência, como queria Spengler. Ter voz é ser no mundo, ou como sustenta o diretor e dramaturgo Roberto Alvim: “eu falo: eu existo”.
Zé Manoel, pianista e compositor pernambucano que lançou seu álbum de estreia esse ano, descobriu a experiência da voz-canto quando participou do festival da canção Edésio Santos e depois quando passou três meses em um cruzeiro como pianista e se viu na obrigação de ter que cantar o que lhe pediam (mecanização da voz). Agora ele assume e aceita a sua voz como construtora de planos diversos e de vibrações capazes de desencadear estímulos criadores e sinestésicos. Suas letras – palavras de uma fala criadora de particulares subjetivações – são de poéticas simples, trabalhadas de forma rica e criativa, uma criatividade que busca traduzir a complexidade de amores e de alegrias em versos tocantes, construídos com gingado e balanço cancioneiro.
Nas faixas de seu CD encontramos valsinha, samba, chorinho, jazz e outros elementos regionais, mas o que chama a atenção, no aspecto instrumental, produção e de arranjo, é o timbre cristalino do piano, com notas de ecos clássicos e de clareza impecável. Não se sobressalta uma nota, mesmo em músicas com arranjos de mais instrumentos como “Sol das Lavadeiras” ou “Dizem (Quem não chora não mama)”; conduz as cadências com talento e com um feeling jovial que faz até parecer que são de fácil execução (mesmo que não tenham complexas harmonias, a forma com que as toca, sua “pegada”, faz com sejam composições únicas).
Sol das Lavadeiras (Ze Manoel/Mavi Pugliesi) – Part. Grupo Bongar by zemanoel
O lirismo de Zé Manoel o aproxima de grandes compositores como Paulinho da Viola, Dorival Caymmi e Chico Buarque, e faz dele um representante de peso da nossa música (sem querer, no entanto, limitar-lhe fronteiras geográficas. Tanto que logo mais ele estará em uma turnê europeia, uma proposta da produtora francesa V.O. Music que representa nomes como Esperanza Spalding, Milton Nascimento e Richard Bona). Mostrando que é pessoa antenada na cena da música atual, que observa e participa das progressões que vem acontecendo em nossa música, ele regravou Samba Manco, do compositor vanguardista Kiko Dinucci e tem composições em parceria com pessoas como Mavi Pugliesi, Chico Limeira e Vinícius Sarmento.
Para nossa sorte, Zé Manoel descobriu o poder da sua voz, aprendendo a se utilizar da força de criação intensiva de sua palavra como intérprete e de seu discurso como compositor, uma descoberta que enriquece a música, engrandece espíritos e deleita ouvidos. Zé Manoel existe e faz existir.
por Jocê Rodrigues.
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