Wroclai, Everardo Norões

as palavras pesam tanto quanto as personagens que transitam por essa cidade em nervos. os olhos se viram, cabeças erguidas espiam as cidades. wroclai é som longínquo, ruidoso, se mantém em loop. o trator de paulinho do amparo é feito de metal e carne. está cada vez mais visível a nossa vida subterrânea. os corpos em trânsito estão travando felizes na rede. norões, esses dos contos como atos que se relacionam. vozes que constroem mapas para labirintos. essas histórias repletas de gentes que estão visíveis, mas sob sombras. (c.g.)

– Tenho muito respeito pelo trabalho de Wellington de Melo. Juntos fizemos os primeiros contatos com o pessoal da oficina cartonera da Bomba do Hemetério. Também escolhemos os contos, um dos quais inédito, “Cemitério de saguins”. Os três textos guardam uma certa unidade, que é o pensar sobre as coisas que acontecem no lugar em que vivemos. Circunstâncias às vezes absurdas, que de tão corriqueiras passam despercebidas: a ausência do poder público na organização das comunidades, o distanciamento de certas áreas da cultura em relação à nossa realidade, a absurda desumanização de certas profissões, como a medicina etc.

– A leitura de Paulinho do Amparo expõe uma visão da nova geração sobre o que acontece na cidade. O monstro mecânico com sua escavadeira deglutindo a cidade, transformando em escombros a vida das pessoas, sem calçadas, transporte público ou saneamento básico.

– Os contos não têm relação com os poemas, são formas diferentes. Porém, as questões que perpassam os dois gêneros têm uma mesma razão, o que chamei num texto recente “linhas negras, gota encarnada”, que é a articulação do texto no branco do papel (as linhas negras) com a gota vermelha, o sangue da existência.

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Capas únicas com serigrafias de Paulinho do Amparo.

O quadro de Brueghel [trecho]

O artista deveria fingir subserviência? Em todas as épocas o criador sobreviveu à custa de encomendas, sustentado por mecenas. Cortejar e aceitar compromissos subalternos são estratagemas do ofício. Nem mesmo Leonardo Da Vinci conseguiu se desvencilhar disso.

– O que teria sido dele, nos últimos anos de exílio, sem os mil escudos de ouro pagos pelo rei da França?

– E Brueghel?

De pé, na calçada do cinema, acendi o cigarro e contemplei a paisagem em torno. À esquerda, o Capibaribe deslizando detrás de prédios decrépitos e muros manchados de lodo. À direita, a rua desembocando na avenida Agamenon Magalhães, ligando Recife à Olinda, serpente a abocanhar o que ainda resta de história naquele emaranhado de sobrados, bares, favelas. Na primeira esquina, uma enorme escultura em cimento de um boi, em frente a uma churrascaria, monumento ao abate.

Dei uma baforada, expeli a fumaça com desgosto e, num gesto compulsivo, saquei o celular e disquei para chamar o táxi.

 

Velho conhecido, o taxista abriu a porta e me cumprimentou com uma espécie de continência.

– Boa tarde, doutor!

– Não sou doutor. Sou simples pintor.

Gostava de seu Pedro. Sabia histórias interessantes sobre a vida de passageiros conhecidos. No sinal da avenida, dois flanelinhas jogavam água no para-brisa dos automóveis. O taxista tinha sempre à mão algumas moedas para se livrar deles com rapidez. Deu cinquenta centavos ao primeiro que se aproximou. O guri agradeceu com o polegar erguido, um sorriso de dentes quebrados, e saiu correndo em busca de clientes.

No final da Riachuelo, estacionamos no prédio onde moro, sétimo andar, fachada de pastilhas de azulejos leprosos. Desci do automóvel batendo a porta com força. Olhei para os lados, atento, como se maior atenção pudesse livrar-me do assalto. Caso ocorresse, seria o terceiro nos últimos dois anos. O primeiro foi nas imediações da Casa da Cultura, surpreendido com a ponta de uma faca me pressionando à altura do rim esquerdo, enquanto uma voz de criança anunciava:

– Passa a carteira, tio. Passa depressa, senão te mato!

O outro, cerca de seis da noite de um domingo, num estacionamento próximo ao Cais da Alfândega. Dois rapazes bem vestidos, um deles colocou o cano da pistola em minha cabeça e ameaçou um sequestro. Guardei a sensação daquele choque, o ímpeto de reagir neutralizado pelo olhar do comparsa; a mão tremente apalpando a arma, pronta para desferir o tiro; o olho vermelho de drogado. Pediram a carteira e cartões de crédito. Saíram sem pressa. Dei partida no carro e foi como se um bicho estivesse a abocanhar meu sexo, o cão amestrado utilizado nas sessões de tortura por um dos coronéis da cidade.

Wroclai (2016), de Everardo Norões, selo Mariposa Cartonera.

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Outros Críticos Escrito por:

Desde 2008 atuam desenvolvendo projetos de crítica cultural na internet e em Pernambuco. Produziram livros e publicações, como a revista Outros Críticos, além de coletâneas musicais e debates, como os do festival Outros Críticos Convidam.

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