a máscara da linguagem
O velho grandioso e solitário cambaco Vicente Barreto, compositor e violonista, está novamente dizendo canções – após 10 anos sem lançar discos – ao lado dos músicos Kiko Dinucci, Romulo Fróes, Rodrigo Campos, Marcelo Cabral, Thiago França, Juçara Marçal, Sérgio Machado e do seu filho Rafa Barreto. Mas a estória que desejo contar não é sobre a música, é sobre o que devaneia os sons, o que o tangencia com linguagens várias.
O velho grandioso e solitário elefante desenhado como pintura rupestre pelo multi-artista Manu Maltez na capa do álbum de Vicente Barreto, que “é quase um cazumbi/ velho elefante do Cambuci/ trombone mudo em curva de rio/ só espera a morte entrar no cio”, da canção “Cambaco”, composta em parceria por ambos os artistas, para essa estória, é mais uma das passagens de acesso ao labirinto de linguagens por onde Maltez parece gostar de perscrutar.
Vendo a diversidade de linguagens a que ele se dedica a manejar, não só com a assinatura manu maltez – essa identidade – mas na co-autoria que seus desenhos, ilustrações e gravuras assumem no contato com textos de outrem, pois uma vez esbarrados em seus traços acabam por se transformar em obras também suas (a exemplo dos livros O corvo, de Edgar Allan Poe, ou Rasif – Mar que arrebenta, de Marcelino Freire), tamanha a força das relações que se estabelecem.
Esbocei numa primeira tentativa de ensaiar sobre esta persona, que cada linguagem se constitui como uma máscara, e a sobreposição de máscaras criam várias camadas-texturas que uma vez sobrepostas, quando investigadas a fundo (ouvindo canções, vendo shows, desenhos, lendo os livros), na retirada de cada uma dessas camadas, o investigador-pesquisador parece nunca chegar novamente ao marco-zero-manu-maltez. Sua cara não existe, pois quebrar as fronteiras das linguagens é justamente vestir essa máscara. Percebê-la não como um destino, mas como uma condição – artística?

O tráfego pelas linguagens artísticas a que insistentemente me submeto, me faz constatar cada vez mais que cada expressão (desenho/musica/texto) é insubstituível, mexe com sentidos muito diferentes. Embora haja um assunto, ou melhor, uma obssessão que perpasse todas elas. Não faz muito tempo que desisti de me debater sobre essa necessidade de me envolver a fundo com todas. Embora ache que não se deva “quebrar as fronteiras” entre elas, mas sim, de contrapô-las, estabelecer relações, nunca subservientes.
De certa forma, o filme “O Diabo Era Mais Embaixo” representa esse momento conciliatório. É significativo você me dizer sobre essa questão das máscaras, de como cada linguagem que utilizo em meu trabalho poderia ser vista dessa forma. Sobreposições de camadas. Nessa perspectiva o “assunto” do filme “O Diabo Era Mais Embaixo” seria a própria linguagem, de como ela pode ser enganosa e traiçoeira. Isso explicaria a necessidade vital do uso das máscaras no filme. E também o fato de o diabo ser o único personagem do filme que não usa máscaras. Isso me fez pensar que todo esse entrecruzamento de linguagens seja na verdade um estratagema para tentar assegurar minha identidade, não só para os outros mas principalmente para mim mesmo. Um estratagema para não enlouquecer, eu diria. Pois essa tal Identidade vive escorrendo por entre meus dedos, perdendo-se em meus abismos. Não é que ela não exista, mas está sempre “mais embaixo”.
O diabo era mais embaixo como conto, novela, livro ilustrado, filme, show, teatro, disco, narrativa. Enquanto a crítica ainda fala em fronteiras, o artista-crítico já resolveu essas questões lá atrás, provavelmente na lida, no manuseio com todas essas vozes. A questão é se a máscara do poeta Poe ainda cabe em sua cara, se a do escritor Marcelino Freire também cabe, a do cambaco ou a de Vicente Barreto cabem. Ou se a máscara de Manu Maltez cabe na cara de Manu Maltez. Máscaras como deslocamentos do eu, como linguagem sem medida. Eis o que ensaio: as máscaras são suas fôrmas disformes.
a máscara de Judas
Cate Blanchett cambaleia; ombros baixos, desgrenhados cabelos e uma entonação na fala que falseia uma canção que diz: I’m not there. Ela encena a personagem Jude, como o fantasma Dele que ainda permanece como névoa do final dos anos 1960 ou todas as revelações da música folk, pop e rock and roll que também pôde ser capaz de dizer: Não estou lá: filme de Todd Haynes que encorpora em vários atores e atrizes os momentos-chave das diversas máscaras que Bob Dylan encarnou durante sua trajetória artística. A passagem do violão de aço do cantautor de músicas folks à la Woody Guthrie ao cantor empunhando uma guitarra à frente de uma banda se dá em quando uma de suas primeiras máscaras é retirada da cara.
Vou mudando de personalidade, vou […] enriquecendo-me na capacidade de criar personalidades novas, novos tipos de fingir que compreendo o mundo, ou antes, de fingir que se pode compreendê-lo.
Os olhos vivos de Jude/Judas/Blanchett/Dylan/Judas encararam a estridência sonora de uma plateia que gritava uhhhh ou “Judas” na apresentação de Bob Dylan no Newport Folk Festival de 1965 – justamente nessa mudança de máscaras – diante de uma música que rosnava de volta, com certo carinho, “With no direction home/ Like a complete unknown” ou
Multipliquei-me para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me
Como estes caminhos tortuosos entre artistas, público e crítica são possíveis porque encorajados por todo o tipo de contradições, empunhar guitarras deva ser sempre esse lugar de deslocamento e fricção entre as diferentes máscaras pegadas à cara. Mas o que restou daqueles corpos e despedimentos do eu, da identidade, autenticidade, senão o desejo de abandonar canções, temas, estórias, personas e estéticas pelo caminho?
Performar aqueles temas folclóricos repletos de C, D, Am e Sóis instauraram nas canções de Dylan um outro tempo/espaço, que era igualmente ocupado pela ancestralidade e modernidade conflitadas dentro daquele ínfimo instante – o tempo poderoso de uma canção. Tempo/espaço este que não se referia apenas pelo uso de instrumentos eletrificados, mas pelo modo crítico como essas canções eram desarticuladas de sua forma habitual. Ser o cantor de protesto reverenciado por multidões entrincheiradas contra a música classificada por eles como comercial, imobilizava as ações de Dylan, que muito rapidamente destinou-se a ser sempre o outro.
Ensaio a ideia de que o público vaiando a performance de Bob Dylan, sua banda e canções, acusando-o de trair a música folk, política, em troca da música pop, vendida, está presente ainda hoje como urro fantasmagórico que passeia pelos mesmos meandros entre artistas, público e crítica mencionados anteriormente; porém, o que difere de outrora, é que há cada vez mais artistas-críticos, públicos-críticos e críticos-críticos dispostos a moverem-se para fora dos lugares-comuns, espaços-estanques, máscaras modeladas ou outros tipos de binarismos culturais, pois já é chegada a hora de
Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.
a do ventríloquo
Bob Dylan disse-me I’m not there,
Fernando Pessoa disse-me Vou mudando de personalidade,
Álvaro de Campos disse-me Viver tudo de todos os lados,
Vicente Barreto disse-me Já faz tempo que o tempo se perdeu, Só cambaco se lembra de achar,
Manu Maltez disse-me O diabo era mais embaixo,
Uns ventríloquos, eu disse. O que todos nós éramos. Mas essa comunidade artística de outros e outras vozes, espaços, experiências, identidades, máscaras, o que ela nos tem a dizer, afinal? Diga-me,
Publicado originalmente na revista Outros Críticos #09 – versão da revista on-line | versão da revista impressa
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