Um convite para escrever como colunista no site Outros Críticos. Um encontro. Assim, uma ideia de dança me veio como proposta de escrita. Um dos meus interesses de investigação em dança atualmente é a improvisação como prática, como exercício, para a composição cênica. Entendendo cênico aquilo se apresenta ao outro, com fins estéticos, como esse texto. Na dança, um dos caminhos de utilização do improviso para compor é delimitar algumas bordas, regras, que sempre podem ser subvertidas. Mas é nesta relação com as regras que o movimento é provocado.
Os contornos desse texto são: discutir improvisação a partir da dança (que a área a qual pesquiso), escrever um texto a um só tempo (começar hoje e terminar hoje, dia 3 de setembro), improvisar com outros (a partir de textos, músicas, vídeos). “A questão de encontrar o equilíbrio entre estrutura e liberdade é um dos desafios de quem improvisa, principalmente porque a estrutura não pode anular a liberdade e nem a liberdade anular a estrutura. Ou seja, a estrutura não pode ser esquecida e nem a liberdade pode ser tolhida, pois é no equilíbrio entre uma e outra que a invenção acontece.” (MUNIZ, 2014, p.62).
Para o senso comum, o improviso em dança (e em muitas outras áreas) é visto como uma prática de liberdade total, uma expressão livre do ser em movimento. Mas esse entendimento de expressividade leva a algumas más interpretações dessa prática, que podem incorrer num entendimento dessa dança como atrelada a um livre arbítrio absoluto, e que se opõe a um projeto coreográfico supostamente determinista. Essa dicotomia é frágil. Pois o exercício de improvisar um movimento acontece com o dançarino mesmo nas obras coreográficas mais estruturadas, assim como os as danças improvisadas revelam muitos padrões estabelecidos no corpo de quem se movimenta. Assim, me aproximo do pensamento da filósofa e dançarina Marie Bardet que discorre sobre a improvisação em dança como “uma apreensão diversificada e movente de uma subjetividade em devir, mais do que a expressão da autenticidade, da natureza do eu” (BARDET, 2014, p. 162).
O improviso se apresenta, então, como uma escolha de investigação artística que tem um horizonte a ser observado, ou um chão em perspectiva. Essa minha escrita dançada, por exemplo, tem um desejo de aprofundar algumas questões de minha investigação sobre corpo, criação e improvisação que estou desenvolvendo no mestrado em Dança na Universidade Federal da Bahia. E também faz parte das ações da pesquisa “A improvisação do movimento como caminho para composição cênica” desenvolvida com as pesquisadoras Juliana Brainer, Taína Veríssimo e Valéria Vicente do Acervo RecorDança. Esses dois contextos delimitam minha proposta de improvisação desse texto. Mas a própria experiência de escrever já abre um território instável de possibilidades de conexões e relações.
Nesse momento meu corpo acionou a lembrança de uma parceria com o Mojav Duo em 2012. Fui convidada por Fred Lyra e Hugo Medeiros para improvisar em um dia da temporada que fizeram no Teatro Joaquim Cardozo. Acessei o link de um dos momentos dessa experiência. E aqui passo a escrever com a presença da música/vídeo no computador. Intercalando a escrita, com imagens do vídeo e com o som da música “De Costas pra Terra”. Para mim essa experiência de relação com músicos, improvisando, me trazia reflexões sobre que parâmetros atravessavam os movimentos de nós três.
Confesso que foi bem difícil agora escrever enquanto ouvia “De Costas para Terra”. A sonoridade da bateria proposta por Hugo me impelia a escrever em um tempo muito mais rápido do que o meu pensamento estruturado. Minha escrita, assim, diminuiu totalmente o fluxo em que estava. Em 8 minutos de música, só consegui escrever esses dois parágrafos acima e com muitas pausas. Como se as batidas criassem um lugar de resistência de fluxo no meu corpo, ou necessidade de mudança total de fluxo que não consegui imprimir em minha escrita. E mesmo com a guitarra de Fred se colocando numa base contínua, não consegui me relacionar com ela nesse momento, pois a bateria de Hugo me arremessava para pensamentos cortantes e fragmentados. Sem conseguir realizar isso, reduzi o meu tempo de escrita e fiz várias pausas. (Escrevi esse parágrafo todo depois que o vídeo tinha acabado, e em fluxo muito rápido e quase sem pausas, como uma correnteza que corre rapidamente depois de ter seu fluxo contido por uma zona repleta de pedras).
É justamente essa investigação de enação, percepção e ação acontecendo conjuntamente, que ocorre na dança improvisada (SILVA, 2013). Qualquer estímulo e imprevisto que ocorre no espaço da dança, seja um som, uma luz, um dançarino que aparece, é percebido e o movimento já se relaciona com essa nova informação. E os caminhos se refazem. O improvisador é um pirata. Aquele que vive a experiência, a travessia e o perigo. Um sujeito ex-posto, como apresenta Bondía. “O sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião” (BONDÍA, 2002, p.24).
PAUSA. Nesse momento me levantei da cadeira. Fui para janela da sala. Fiquei observando os pingos de chuva se derramando sobre pé de castanhola no pátio do prédio em que moro. Bebi água. E escovei os dentes. O contato com a água me ajuda a descomprimir a densidade dos pensamentos ativados em meu corpo.
E sinto desejo de explicar sobre o acionamento da memória da experimentação de improviso com o Mojav Duo. É o que chamamos de acionar repertórios, ou experiências, ao longo do fazer. Desde 2011 tenho uma parceria com os músicos Fred Lyra, Hugo Medeiros, Caio Lima e Mateus Alves de realizar JAMs de improviso em dança e música. E em 2013 lembro que traçamos alguns princípios que fossem parâmetros tanto para os músicos como para os dançarinos improvisarem nas JAMs realizadas pelo Coletivo Lugar Comum. Assim, cada Jam teve um ponto de partida para a investigação, e foram eles: espiral; múltiplos focos; superfície; peso como alavanca; o pré-movimento; pulso. Esses princípios eram entendidos e experimentados por cada improvisador de maneiras diferentes, e sempre podiam ser subvertidos, esquecidos ou expandidos ao longo da JAM. Era o terreno em comum para iniciar um diálogo e suas relações. Mas um território instável e imprevisível que se construía conjuntamente ao longo da JAM.
Contato Coletivo from Ju Brainer on Vimeo.
Então o que me interessa é essa potência que a improvisação do movimento traz para os processos de criação. É investigar a partir de parâmetros. É mover repertórios. Atravessar memórias. E se colocar no risco, no que está por vir.
“Na dança a improvisação sempre foi utilizada. Porém, é a partir das experiências dos artistas pós-modernos norte-americanos, nas décadas de 1950 e 1960, e da apropriação dos princípios do Jazz, é que se observa maior disseminação e sistematização do seu uso. As principais mudanças que a improvisação gera acontecem nos processos tanto de criação como na lógica que rege fatores como o uso do espaço, do tempo e da energia do movimento”. (MUNIZ, 2014, p. 71).
É com esse repertório de práticas sistematizadas de improviso, advindos da experiência do Judson Church Theatre e do Contato Improvisação que me situo. Pois existe improviso nas danças tradicionais, na dança moderna europeia, em práticas de dança rituais, e muitas outras. Minha trajetória artística se aproximou dessas experimentações e sistematizações da denominada dança pós-moderna.
O que esses repertórios acionaram? Minha experiência com a prática do Contato Improvisação e com exercícios de Composição em Tempo Real ampliaram os caminhos para o criar. Trouxeram o prazer de experimentar o movimento, de buscar suas lógicas em meu próprio corpo, de acionar repertórios, de aguçar a atenção aos estímulos do momento e do outro, e construir percursos singulares. Existe nesse fazer uma porta ampla para praticar autonomia e autoria (singularidade). E ao mesmo tempo uma abertura para o devir, o que não sabemos, um desvio no caminho (alteridade).
Nesse momento de pesquisa muitas questões estão aqui remexidas e que pretendo ainda investigar, refletir, mover. Um caminho a percorrer…
Mas observo que mover o corpo por uma estratégia de devir singular em confronto com perspectivas de alteridade modifica a criação em diversos aspectos. Fica mais distante a possibilidade de construir uma obra em que a narrativa tenha começo, meio e fim. Pois o confronto de temporalidades entre memórias e devires pede mais simultaneidade e fragmentação na construção cênica. Assim como o jeito do corpo se mover pede mais coerência com a proposta da obra. Assim, o performer cria sua fala, sua maneira de movimentar, que muitas vezes se distanciam de uma técnica reconhecida de dança. A relação com o espaço se multiplica, se desdobra, e transborda da caixa cênica comumente utilizada pelo teatro italiano. E nesse sentido reconfigura também a disposição do público. São estas apenas algumas pistas.
“Assim como se modificou a forma de fazer dança, o olhar acompanhou esse movimento. A percepção simultânea e multifocal substitui a linear-sucessiva, as quebras cênicas buscam uma referência à vida, que não é lógica, nem pragmática na dispersão, e a coesão de uma narrativa linear e uniforme é substituída por signos e alegorias voltados para a experiência da percepção e da sensação”. (MUNIZ, 2014, p. 87).
Refletir sobre treinamentos e práticas de dança apontam para formas de habitar o corpo que alimentam visões de mundo, visões no mundo. Para Ranciére, a estética está na base do campo político. A arte, como espaço de partilha do sensível, atua diretamente na visibilidade de pensamentos e formas de estar no mundo. “As práticas artísticas são maneiras de fazer que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade” (RANCIÉRE, 2009, p.17). Entender quais os pensamentos e maneiras de ser difundidos por práticas em dança que tenham a improvisação como base criativa é o caminho que essa pesquisa pretende percorrer. Ao lidar com o improviso como investigação meu mundo se modificou profundamente. E isso me interessa como ponto de flexão para pensar a dança e sua construção de conhecimento para o mundo. “Pensar através do movimento, em movimento, o gesto em curso de se fazer…” (BARDET, 2014, p.195).
REFERÊNCIAS
BARDET, Marie. A filosofia da dança: um encontro entre dança e filosofia. Tradução Schôpke, Mauro Baladi. São Paulo: Martins Fonte- selo Martins, 2014.
BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. Bras. Educ. [online]. 2002
MUNIZ, Zilá. Improvisação como elemento transformador na função do coreógrafo na dança. Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação em Teatro. Universidade do Estado de Santa Catarina. Florianópolis, 2014.
RANCIÈRE, Jaques. A partilha do sensível: estética e política/ Jaques Rancière; tradução e Mônica Costa Netto – São Paulo: EXO experimental org; Editora 34, 2009 (2ª edição)
SILVA, Hugo Leonardo. Mundos sem chão para a dança de contato improvisação. In Coleção Corpo em Cena, volume 7/ Lenira Rengel, Karin Thrall (organizadoras) Guararema SP: Andarco, 2013.
VÍDEOS
1 – Dorsal, de Marie Bardet (2007)
2 – Temporada do Mojav Duo no Teatro Joaquim Cardozo, com participação de Liana Gesteira (2012)
3 – Contato Coletivo – Encontro de Contato Improvisação de Pernambuco realizado pelo Coletivo Lugar Comum (2013). Imagens e edição de Ju Brainer
4 – Contato Improvisação na Jonh Weber Gallery, New York City (1972). Video realizado pela Change Inc. Performers: Steve Paxton, Danny Lepkoff, Barbara Dilley, David Woodyberry, Laura Chapman, Nancy Stark Smith, Mark Petersen, Emily Stege, Nita Little, Leon Felder, Curt Siddall, Tom Hast, Mark Fulkerson
Que maravilha poder acompanhar mais um processo seu de improvisação. Muito instigante perceber essa escrita com os vídeos. Fiquei muito curioso também com esse livro de Marie Bardet, procurando agora o ebook ?
Interessante.