(um breve apontamento sobre o fazer crítico escritural)
o trato com obras de arte, sim, pois acredito fortemente que a música seja de uma outra ordem que não a do puro entretenimento (ainda que também lhe caiba esse papel na medida em que não devore toda a potência da experiência estética frente à necessidade neurótica do receptor), merece atenção e cuidado. mesmo com todo um processo constante e inevitável de hibridação de linguagens nos diversos campos da arte, o fazer crítico, enquanto diálogo com determinado trabalho, é encarado como algo impossível quando não segue as normas e delimitações pré-estabelecidas por uma linha de mercado. a cela de três linhas e cinco estrelas tornou-se, para muitos, um habitat confortável.
debater-se nessa gaiola, forçar suas grades, forçar-lhe o tombo para que a porta se abra deixando entrever um vulto de liberdade é, aos olhos de muitos, um esforço inútil e um desvario. nem ao menos há a possibilidade de se habitar essa gaiola de maneira singular, pois, ao contrário de um haikai, nela é proibido criar uma movimentação metafísica ou – para aqueles que acham metafísica um termo démodé – intuitiva. esse convencionalismo que impera nas mentes simplórias dos entusiastas do pós-tudo (humano, moderno etc) não se moverá facilmente, mas, é importante frisar, ISSO POUCO ME IMPORTA. não me interessa como as posições conflitantes que insurgem na minha proposta de fazer crítico vão operar em gente boazinha demais que quer salvar o mundo enquanto faz questão de afirmar polaridades [periferia/centro, erudito/popular]. jamais me interessou se aprovam ou não um fazer crítico guiado pelo erotismo e pelo desperdício, que não possua uma finalidade a não ser ele mesmo e o diálogo com seu objeto, encenando-o, teatralizando-o. inserindo signos potentes de ampliação e pluralidade.
acabo de retornar de belo horizonte, onde à convite dos organizadores do festival palavra som ministrei a oficina: o corpo (neo)barroco: a crítica musical como ponte poética, e senti na pele a reação que algumas pessoas tem ao se deparar com ideias não-ortodoxas, que propõem uma ida adiante, além, para um lugar escritural onde não impere o discurso prático, fechado e pragmático.
o corpo parece estar domesticado, dócil. obrigado a permanecer em territórios onde as fronteiras são muito bem marcadas e vigiadas. não é possível se aproximar dessas linhas sem receber um forte tratamento normatizador.
em contrapartida, também conheci pessoas interessadas em caminhar na direção oposta desse discurso unívoco que é guiado somente pela utilidade e pela retidão do geometricamente fechado. através dessas pessoas é que afirmo que tais discursos coexistem, mesmo que em graus muito distintos, e que é possível enveredar por caminhos que não visem uma aprovação cultural. o que é feito dessa é forma é feito porque assim precisa ser, a objetividade atua de outra maneira, deixando seu posto de elemento de maior importância para funcionar também como ornamento.
o que interessa não é a geometria da superfície
mas a carne que pulsa por baixo dela
justamente por não ver nesse sistema euclidiano uma saída válida para essa prisão formal é que propus sistemas fractais de estrutura e interpretação crítica. por serem mais dinâmicas e capazes de movimentar polissemias e contradições sem com isso comprometer o fazimento dessa operação crítica (já que não possui obrigações para com a regra econômica, racional e puramente comunicativa).
fractal é uma figura geométrica n-dimensional com uma estrutura complexa e pormenorizada em qualquer escala. os fractais são auto-similares e independentes em escala, ou seja, cada pequena seção de um fractal pode ser vista como uma “réplica” em tamanho menor de todo o fractal. isso significa que podemos recorrer a um padrão dentro de outro padrão e assim por diante, partindo da complexidade maior do todo. é a chamada simetria de escala. (felipe pena)
é claro que é sempre muito ousado trabalhar com posicionamentos que confrontem um sistema dominante e toda ousadia é tratada como crime ou como loucura.
para
as pessoas de
corpo cristalizado
é necessário banir o discurso que ousa, que não seja da ordem da simplicidade, é preciso encerrar seus emissores em muros altos e fortes, para que sua voz, seu discurso desvairado e incoerente, não ameace a ordem. é preciso calar o gato de cheshire por ousar a romper a estrutura de linguagem de sua condição animal.
na escritura está o corpo e nele a linguagem, a subjetividade. uma bagagem particular de mundo, tal como uma obra que esteja em busca de arejar a linguagem, de riscar o corpo limitado da linguagem com a variabilidade sintática na voz ou no papel que diminui ou dilata o abismo entre o que se diz e o que se quer dizer
materializar respostas criativas à obras que, através de pulsões, também foram materializadas em linguagem através de um poder criativo.
quanto + livre a forma
+ potente o conteúdo
não é possível falar de arto lindsay (em sua fase mais pulsiva no manuseio da guitarra) ou de tatiana blass de maneira racional e econômica sem com isso perder uma infinidade de sensações importantíssimas na recepção e fenomenologia de suas obras. é por simples desmesura de corpo que intuo que a melhor forma de resolver tal problema é desenvolver operações escriturais que preencham de eco as habitações artísticas.
por isso a escolha do (neo)barroco como disparador de tais operações.
aspirando dominar o objeto não pelo equilíbrio, mas pela exasperação das contradições,o barroco é vertigem e imobilidade – salto congelado (octavio paz)
da oposição entre as determinações clássicas e barrocas de eugenio d’ors, às descobertas cosmológicas e mudanças de paradigmas de severo sarduy: um fazer crítico barroco não lança luz àquilo que já está iluminado pela razão prática, econômica e utilitária, ele lança sombras necessárias. assim sendo
já não se trata de lançar mais luz
a um sistema já exposto por completo
mas de obscurecer
emprestar-lhe penumbra
para que outras vivências possam surgir
por Jocê Rodrigues.
Arte de capa do livro Sombra (2010), de Suzy Lee.
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