
por Bruno Vitorino.
Pode parecer um reducionismo simplista retirar a música de seu altar consagrado à elevação do espírito humano e lançar-lhe um olhar mais enraizado em seu processo social. Vê-la como o fruto exclusivo do compositor que, isolado da humanidade, atormentado pelo peso do gênio e movido por uma força incontrolável, entrega ao mundo uma obra sublime para ser apreciada com um fervor religioso pelo público é uma doce ilusão que o ideal romântico de Wagner incutiu no imaginário do homem ocidental e que, de alguma maneira, ainda vigora. No entanto, enxergar um trabalho musical como o resultado de uma rede de atividades coordenadas, levadas a cabo por muitas pessoas, que tem o compositor como figura central do processo revela uma dimensão coletiva da música a qual costuma passar despercebida. Nas palavras de Eduardo Seincman, “a obra musical é mais que o resultado da técnica e da estratégia do compositor. É um mergulho vertical nas águas profundas da coletividade humana”. Assim, mudando-se de lugar no território da observação, aquilo que nasce da sistematização seletiva por parte do autor, ou seja, das escolhas feitas por este durante a manipulação daquele material bruto e inquieto que brota em seu peito e é submetido à estruturação objetiva de notas e palavras, via intelecto, segundo aquilo que se convencionou por música em seu meio, não é por si só um artefato pronto, acabado.
A escrita de um tema é apenas uma parte – obviamente que fundamental – de toda a cadeia produtiva da música, mas não a única. De tal modo, aquilo que se ouve num disco não é simplesmente a ideia original do compositor criptografada numa partitura depois de uma viagem interminável por suas veredas interiores ou de um apanhado de suas impressões do mundo traduzidas em som. É, na verdade, o desdobramento desta ideia, transformada em maior ou menor grau coletivamente pelas intervenções externas à concepção primeira do autor. A mudança de um acorde, a arquitetura de um arranjo, a alteração de uma palavra, as circunvoluções do andamento, o calor da interpretação; tudo isto modifica, reconfigura e define a música, sendo o álbum o recorte no tempo que busca eternizar o transitório de todo esse delicado manuseio. Atento a essas vicissitudes do fazer musical, o compositor e pianista pernambucano Zé Manoel fez de seu segundo trabalho, intitulado Canção e Silêncio, a plataforma do exercício coletivo da criação ao convidar dois dos mais importantes produtores musicais brasileiros da atualidade – Miranda e Kassin – para ajudá-lo a lapidar os diamantes brutos que sua alma sensível gerou.
Mergulhando no que há de mais belo na tradição daquilo que ficou conhecido como Música Popular Brasileira, Zé Manoel resgata à canção, de uma maneira muito sua, a riqueza na construção narrativa das letras, a simplicidade quase intuitiva nos contornos melódicos os quais vão se derramando, tal como as águas nascentes do Velho Chico, sobre acordes que se sucedem com uma solidez deslumbrante por caminhos harmônicos não raro inesperados e sinuosos. Sua voz é pequena, mas precisa e afinada, apresentando-se como o veículo primordial na transmissão dos conteúdos emotivos; já seu toque ao piano denuncia o firme treinamento clássico de um estudante que muito ouviu e interpretou Chopin e Debussy, mas que não descuidou de ampliar seus horizontes estéticos com Tom Jobim, Edu Lobo e, por que não dizer, Bill Evans. Cada tema apresentado no álbum parece ter sido esmerilhado com maestria – e aqui nota-se a presença dos produtores a canalizar as ideias e erigir as formas – com o intuito de contar uma história, compartilhar um sentimento, ora deixar-se fascinar pela imponência das forças da Natureza, ora lamentando-se das desventuras do amor que tanto fazem o coração das gentes sofrer há tempos. Tudo isso passando ao largo do anacronismo vão estereotipado na bossa nova de elevador e na música ambiente requintada para almoços pequeno-burgueses que reduzem a arte a objeto decorativo. Destaque para a lenta “Água Doce” com seu ré mixolídio que, fazendo clara referência à identidade sertaneja de Manoel através de sua nota característica (b7), pinta uma paisagem sonora familiar que logo se esvai numa progressão inesperada, como um Sertão cheio de surpresas e belezas incomuns revelado pela chuva; o rubato de “A Maior Ambição” com o belo trabalho da bateria a escamotear o pulso numa euforia rítmica que mais do que negá-lo, referenda-o, delegando à voz a responsabilidade de guiar todos por meio de um sol que começa dórico e vai por caminhos não sabidos até voltar a si mesmo, feito uma canção procurando, mas não conseguindo, ser silêncio; e a camerística “Volta Pra Casa” com a participação da cantora Isadora Melo que, alicerçada por um arranjo preciso, canta com sua voz serena e sem vibratos as angústias da espera pelo bem-amado que foi enfrentar o mar bravio na sua inescapável sina de pescador.
Indispensável!
Publicado originalmente na revista Outros Críticos #8 – versão da revista on-line | versão da revista impressa
Foto de capa do site: Gê Prado
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