Saturno Retrógrado

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Arte de capa de Matheus Mota. O disco conta com as participações de Rama Om, Graxa, Matheus Mota, Júlio Ferraz (Novanguarda), Juvenil Silva, Bonifrate (Supercordas), Zeca Viana e Daniel Liberalino.

por Fernando Athayde.

Saturno Retrógrado, quarto disco do compositor pernambucano D Mingus, é um caminho alternativo às vias de acesso às possibilidades estéticas tomadas pela maioria dos artistas brasileiros. Assumido formalmente como um álbum, o trabalho mantém o pé no chão ao longo de suas doze canções e desperta no ouvinte a percepção de algumas das pulsões que levam o artista a mergulhar no abismo da criação. Sem nunca se deixar abater pelo glamour tangente à empunhadura de uma guitarra, D Mingus se dissolve na normalidade para ressurgir evidenciando símbolos e significados que estavam o tempo todo ali, escancarados aos olhos do mundo, mas que ninguém havia percebido.

Intimamente ligado à necessidade de expressão do artista, Saturno Retrógrado é um trabalho que chama atenção logo de imediato pelo cuidado com a textura sonora aplicada a seus arranjos. “Nesse disco especificamente eu quis explorar algo mais saturado, sujo e esporrento na maioria das faixas”, conta o músico. Essa saturação a que D Mingus se refere, ainda que seja um recurso estético adotado pela mixagem do álbum, também está presente na essência de várias composições. Em “Jovem Vampiro” e “Revolução #6.1”, por exemplo, as guitarras distorcidas surgem tão proeminentes e necessárias ao conceito das canções, que chegam até a lembrar o trabalho realizado pelo irlandês Kevin Shields no clássico EP You Made me Realise, da sua banda My Bloody Valentine, em 1987.

Ainda assim, é importante salientar que essa identidade sob a qual está situado sonoramente Saturno Retrógrado não é um aspecto obtido exclusivamente através da intuição. A sensibilidade com que D Mingus determinou o raio de ação proporcionado por seus equipamentos de gravação também foi uma decisão fundamental para o semblante dado à obra. “Esse foi o primeiro dos meus discos em que fiz a experiência de ir na casa de amigos gravar algumas tracks, apesar de 95% do que gravei ter sido, como de costume, aqui no home studio Pé-de-Cachimbo”. Afastado dos grande estúdios e de seus milhares de microfones e periféricos, o novo trabalho do músico consegue a proeza de extrair a linguagem das frestas abertas pela limitação tecnológica a que ele próprio se impôs.

Conceitualmente lo-fi, D Mingus vai à rua e percebe o mundo exatamente como ele é. Quase como uma mistura de substâncias químicas responsáveis por desglamourizar a boemia recifense que se aloja pelas ruas do centro da cidade, a poesia do músico dá vazão a um disco que mostra a infiltração do pragmatismo cotidiano na vida de um artista. “sangue novo me refez/um jovem vampiro em sua embriaguês/e agora, já passam das três/espero o bacurau mais uma vez”, de “Jovem Vampiro” ou “Gato da cidade/sei quantos telhados tens pisado/Mesmo desamparado/Teu instinto sempre tem te levado /a sobreviver”, de “Gato da Cidade”, são belas reflexões sobre o lado especial que existe em viver um dia após o outro.

“Pra quem cresceu ouvindo música cantada sobretudo em inglês e teve um parâmetro da MPB tradicional pra letras em português, cantar no idioma pátrio é um bom exercício de equacionar o ridículo. Então, minha relação era entre esses extremos de ‘desapego com o conteúdo textual’ para com as bandas estrangeiras e ‘total observância ao texto’ com o que eu cantava em português”, afirma D Mingus atestando algo que desde a primeira audição de Saturno Retrógrado fica claro: a sua visão artística é o final de uma cadeia de hibridizações que unem o noise e o shoegaze à vida cotidiana que se leva no Brasil. Não raro, o Recife serve de berço para artistas advindos do indie rock norte-americano e suas inúmeras vertentes, mas é difícil lembrar um outro que tenha conseguido incorporar o barulho e as microfonias ianques ao sol escaldante da Av Conde da Boa Vista com tanta propriedade e beleza.

Fazendo essa mistura funcionar com grande competência, D Mingus é um compositor cuja criatividade está em constante ebuição. Prova disso é que Saturno Retrógrado é seu quarto disco num período de cinco anos. “Eu gosto bastante do formato de LP mesmo, de ‘álbum cheio’ – por mais que eu saiba que hoje em dia pouca gente tenha saco pra ouvir de cabo a rabo”, explica o músico consolidando o fato de que os seus discos são, de fato, uma necessidade superior a qualquer expectativa. São, sobretudo, a belíssima resposta de um artista às sutilezas do mundo habitado por ele.

Publicado originalmente na revista Outros Críticos #8 – versão da revista on-line | versão da revista impressa

Foto de capa do site: Roberto Iuri

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Fernando Athayde Escrito por:

Músico e jornalista. Edita o site Neurose.

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