
“A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, significando nada” – Shakespeare (Macbeth)
uma quase-alergia à carne e uma angústia descomunal e poética.
ao falar sobre mentiras e sobre os efeitos das palavras no aparelho subjetivo de cada um, Jair Naves desnuda discursos em E Você Se Sente Numa Cela Escura, Planejando A Sua Fuga, Cavando O Chão Com As Próprias Unhas (2012) e mostra um pouco da sua visão do mundo. depois do EP Araguari, Jair vai além e propõe outras formas estéticas para o seu trabalho.
a introspecção é usada como ferramenta fundamental na construção de narrativas duras, humanas, miseráveis e também otimista às vezes, como toda existência. Jair Naves se mostra um verdadeiro moralista. não no sentido que se dá no senso comum, mas no âmbito filosófico, onde se propõe a tratar de questões da alma.
as relações entre pessoas, família e também a relação com a morte e com conceitos de grande complexidade, como Deus, são expostas de maneira direta, sob a ótica crítica de quem não tem medo de dizer o que pensa desse ato tão subjetivo e concreto que é existir.
pode-se dizer que Jair é assolado pelo que os padres monges da Idade Média chamavam de demônio do meio dia, que os obsedava e que era, nas palavras da filósofa Márcia Tiburi, “um misto de maldade com desespero, de amor com ódio, de autocrítica com crítica dos outros que caracterizava o quadro melancólico que tanto fazia com que o monge se sentisse um inútil, quanto fazia com que ele se tornasse um escritor, um artista envolvido em ilustrar os livros, um filósofo em busca das verdades próximas ou distantes”.
o trato com a narrativa, apesar de variar, sempre recai no sarcasmo, nos sentimentos polêmicos com a natureza das relações, elementos que o aproxima (dada as devidas exceções) de um dos maiores escritores franceses do século XX, Georges Bernanos (cuja obra está sendo primorosamente e tardiamente editada no Brasil pela É Realizações), que escreveu: “Para mim, a obra de um artista não é nunca a soma de suas decepções, sofrimentos e dúvidas, do mal e do bem de toda sua vida, mas de sua vida ela própria, transfigurada, iluminada, reconciliada”.
o que Jair Naves traz em seu primeiro álbum solo é som e fúria. não a fúria da postura combatente que disparava na Ludovic – antiga banda de Jair que deixou dois ótimos discos –, mas uma que é madura, shakesperiana e sem bundamolismo.
o disco foi gravado no já lendário Estúdio El Rocha e masterizado e mixado pelo também já lendário Fernando Sanches. tem músicos já conhecidos da cena como Thiago Babalu (bateria) e Renato Ribeiro (guitarra, violão e vibrafone), ambos da saudosa Gigante Animal; Adriano Parussulo e Alexandre Molinari (baixo); Alexandre Xavier (piano) e Cimara Fróis, do Trio Sinhá Flor (sanfona).
E Você Se Sente Numa Cela Escura, Planejando A Sua Fuga, Cavando O Chão Com As Próprias Unhas é um verdadeiro tratado da alma, da suave e racional melancolia de viver e de pequenos momentos de felicidade que dão sentido ao ato cego de existir.
por Jocê Rodrigues.
Foto de capa: Jair Naves na Casa do Mancha por Daniel Moura.
Apesar de letras interessantes, algumas coisas técnicas e formais têm me incomodado nesse disco: certas imperfeições gramaticais na letra, em que algumas palavras têm a sílaba tônica alterada para caber na métrica; o vocal do Jair as vezes fica pouco audível dentro da música. De qualquer forma, vou ouvir o disco mais algumas vezes pra ver se identifico com mais clareza se o problema é do disco ou o problema é com meu ouvido.