
O metal não negocia sutilezas. Nessa trilha, o disco Foda-se (2013) é um manifesto sonoro, uma maçaroca Death/Trash que faz com que o corpo do ouvinte não diferencie mais percepção interna e externa do som. Não dá para ouvir de outro modo se não entregando-se à música sem notar o que é “entorno” e o que é corpo. Ouvindo no headphone ou no som de casa perde-se a noção de música e barulho. O som da banda Desalma pode ser tudo, menos som ambiente. Até porque não dá para escutá-lo sem uma entrega total. É um álbum para se escutar com raiva, com demência, consciente da dor de existir, de quem está puto e coloca isso pra fora.
Para quem não possui intimidades com a música extrema, Foda-se é um álbum difícil, uma espécie de desterritorialização não só da música como do próprio Heavy Metal. Apesar da Desalma seguir uma certa “tendência evolutiva” da música extrema cantada em português, isso não significa facilidade para os ouvidos distraídos. Na verdade, os vocais guturais e rasgados são antes de tudo uma atitude política, pois sem o encarte, no máximo, o que se pode pescar são algumas sonoridades que lembram o português.
Pode parecer estranho falar de política em um álbum de metal, mas a política aqui emerge como dissenso. O português é usada para falar do que nos une em qualquer lugar, a brutalidade da existência. Não há negociações ou dialogismos com o familiar, o local. Ser de qualquer lugar é só um acaso.
A intensidade sonora de Foda-se é uma porrada afetiva, que envolve desde a capa do álbum até, claro, sua violência sonora. Dá vontade de emoldurar a arte gráfica do designer Felipe Vaz e pregar na parede, o que já mostra que Foda-se tem pretensões de ser uma obra sustentada em uma violência estético-corrosiva. É catarse sem compaixão, poesia pútrida com letras que criam imagens realistas como em “Desprezível”: “Não quero saber de sua existência/ Carniça de mundo podre/ Fruta da praga urbana/ Violência”.
A faixa título, síntese do álbum,“Foda-se”, é um exercício estilístico da sonoridade do Desalma. O ouvinte depara-se com um clima splatter enformado por variações de andamentos, aliterações rítmicas, guitarras dobradas, bumbos duplos preenchendo todos os espaços que ameaçam qualquer respiração. É um tratado estético sobre o som descarnado da banda, e não há vocais, pois o título condensa de forma minimalista uma proposta de habitar a paisagem sonora: FODA-SE.
Não há concessões açucaradas ou trivialidades. Se há um no disco, este chama-se música extrema. Um ouvinte crítico encontra-se diante do questionamento da própria ideia de canção ou do que deve ser, de fato, denominado música. Também não há tempo para negociações com a duração das canções, como na faixa “Tortura”, com menos de um minuto e meio. Todas as composições detonam suas mensagens em no máximo três minutos. Há até, de forma sútil para o som do Desalma, algumas canções que se permitem negociar com uma cadência metal menos desarrazoada como nas faixas “Mais um Templo” e “Desgraça”.
Músicas como “Fragmentos” se apóiam em fusões de desespero sonoro e existencial. Mas esses afetos não são da ordem da paralisia diante de nossa pútrida existência e sim, daqueles que não têm mais o que esperar, e por isso, tal como a música do Desalma, vivem com intensidade política o momento: “Esquizofrenia/ O pesadelo do presente está na depravada consciência de solidão/ Corrompida desilusão”. Desilusão positiva de quem mais não se ilude, ilumina-se reconhecendo a violência e a decadência como potências. Música não recomendada para açucarados e descolados.
Como para a maioria das bandas de metal extremo, no som da Desalma há um jogo perverso e profundo, que faz emergir experiências caóticas como a brutalidade, a morte e o mal; ao lado do exímio controle técnico exigido para a execução musical dos detalhes extremamente codificados do Death Metal. Mas é aí que reside o prazer de ser exposto ao som brutal desse bando de desalmados, a sensação de que a potência de suas canções está em flertar perigosamente com os limites da música para expressar o indizível.
Para uma escuta metal, Foda-Se é foda. Mas há algo que também parece escorrer para além do metal, uma sonoridade corrosiva que afeta escutas abertas ao extremo para além das arquiteturas dos gêneros musicais, que permite negociar, mesmo que de forma abissal, com o indizível, com o gozo da própria foda.
por Jeder Janotti Jr.
Belo texto. Capta bem a essência desse discaço da DESALMA.
Grato pelos elogios e sinta-se a vontade para pregar o poster na parede.
Abraço!