Minha primeira lembrança musical remete à canção “Aos Pés da Cruz”, dos compositores Zé da Zilda e Marino Pinto. Não a formidável gravação de Orlando Silva que tocava sempre em casa, mas a inesquecível performance de meu pai lavando louça. Sendo esta sua única tarefa doméstica, meu pai a desempenhava com indisfarçável entusiasmo, desfilando um precioso repertório que ele aprendeu ouvindo rádio durante sua infância e adolescência entre as décadas de 1940 e 1950 na Bahia. Influenciado pelos grandes cantores daquele período como Francisco Alves, Vicente Celestino, Silvio Caldas, Jamelão, além do já citado Orlando Silva, sua interpretação emulava o canto solene e rebuscado dos seus ídolos. Entre jatos de água batendo nas panelas, pratos e talheres, seu vozeirão grave e potente ocupava toda a casa. Posso ouvi-lo agora mesmo. Quando mais recentemente comprei um gravador, querendo testá-lo (o gravador), pedi a meu pai que cantasse “Aos Pés da Cruz”. Minha primeira gravação com meu novo gravador foi a seguinte: “Não tô cantando mais nem pra comprar fiado. Eu não quero cantar não, tô desanimado, tô cantando mais nem no banheiro”.
Elza Soares entrou no estúdio cumprimentando a todos de modo carinhoso, distribuindo beijos e sorrisos. Seria a primeira vez que ouviria os arranjos criados para as canções escolhidas por ela para fazerem parte do repertório do seu disco A Mulher do Fim do Mundo. Posicionou-se bem em frente às caixas de som e pediu para começar a audição. Ao final da primeira música abriu um sorriso ensaiado e olhando pra câmera que registrava aquele momento, soltou um elogio genérico: “Muito bom, essa garotada é muito boa!”. A mesma cena se repetiu com a segunda e terceira músicas que ouve. Depois de ouvir a quarta música ficou em silêncio. Silêncio que se repetiu na faixa seguinte. Durante a sexta música, ainda de costas pra gente, disse em tom sério para si mesma: “vou ter que estudar”. Pausa. Repetiu: “vou ter que estudar”. Pausa. Elza então se virou pra trás e já totalmente desarmada, olhando firme pra gente, disparou: “Mas eu vou destruir!”.
A santíssima trindade da música popular brasileira, segundo meu pai: Jamelão, acompanhado da Orquestra Tabajara, cantando Lupicínio Rodrigues.
Nascido em 1971, minha relação com Roberto Carlos se deu inicialmente pelos especiais de fim de ano durante a década de 1980. Durante muito tempo a imagem de Roberto com seus ternos azuis de ombreiras e sua risada caricata me impediu de conhecer e apreciar sua grande obra. No meu primeiro trabalho como assistente de Nuno Ramos na bienal de São Paulo de 1994, em uma de nossas muitas conversas sobre música brasileira ao longo dos muitos dias de montagem, falamos de Roberto Carlos. Eu, com meu discurso já muito ensaiado, expunha os inúmeros motivos para desprezar a música e, principalmente, o artista Roberto Carlos. Do seu lado, Nuno tinha outros e muitos motivos para me convencer do contrário. Enquanto preparávamos a mistura de sal grosso, parafina e breu que preencheria os moldes das esculturas de Mácula, o trabalho de Nuno naquela bienal, cantávamos o imenso repertório de Roberto. Eu para destruí-lo. Nuno para engrandecê-lo. Passado algum tempo, querendo encerrar nossa peleja musical, apelei para a matemática. Disse a Nuno que apesar de admitir que algumas das canções apresentadas por ele serem realmente muito bonitas, na média, Roberto Carlos era muito ruim. Ao que Nuno prontamente me retrucou: “Não existe média em arte”. E completou: “Não importam os tropeços de um artista, somente o momento em que ele alcança sua grande realização artística, e se isso acontecer uma única vez em toda sua carreira, será por este momento que sua obra será lembrada”.
Diferente da casa dos meus amigos onde Caetano, Gil, Chico, Milton e companhia, dominavam a trilha sonora dos seus pais, a discografia de meu pai era formada unicamente por artistas pré-Bossa Nova. Meu pai sempre me disse que a Bossa Nova e seus “cantorzinhos sem voz” mataram a música brasileira.
O coração tem razões que a própria razão desconhece.
Anos atrás em uma conversa de boteco, dessas em que perdemos uma noite inteira tentando estabelecer um ranking da música brasileira, finalmente admiti que João Gilberto era maior que o Djavan. Foi nesta hora que Djavan tornou-se realmente grande para mim.
Perguntaram a meu pai que nota ele daria para o show de lançamento do meu disco Cão, que ele acabara de assistir. Ganhei um seis.
Ao entrarmos no Palácio do Itamaraty logo nos deparamos com sua icônica escada, uma aparição que surge solta no espaço, sem guarda-corpos e que parece flutuar. Já era uma visão impressionante para mim, mas quando caminhando em sua direção descobri seu duplo refletido em negativo, rasgando o piso onde eu estava e revelando o andar inferior, meu coração disparou. Sei muito pouco sobre arquitetura, naquela época menos ainda, mas me lembro de ser a primeira vez que um prédio me emocionava. Não apenas o gênio de Niemeyer, mas também as obras de arte espalhadas pelo prédio, sobretudo o afresco pintado por Volpi e a parede do auditório projetada por Sergio Camargo, além do exuberante jardim suspenso de Burle Marx e o lindo mobiliário desenhado por Sergio Rodrigues, tudo me fazia crer estar diante de uma espécie de auge da civilização brasileira. Avisado pelo guia que nos conduzia que o Palácio do Itamaraty fora construído para abrigar as solenidades de recepção aos chefes de estado estrangeiros, não resisti à tentação de imaginar a reação dos governantes de grandes potências mundiais, sobretudo os americanos e seu bolo de noiva chamado white house, humilhados diante de tamanha beleza e sofisticação. Fui tomado por um estranho e inédito sentimento cívico. Quis cantar o hino nacional.
Meia é Lupo. Cueca é Zorba. Som é Gradiente. TV é Sharp. Requeijão bom é da Bahia. O que é bom custa caro. Aprendi a ter gosto com meu pai.
Para o nascimento de nossa filha Olga, Alice preparou uma longa playlist com quase oito horas de música para a hora do parto que, previsto para ser normal, seria impossível prevermos sua duração. Nosso obstetra, pouco antes de iniciar seu trabalho, me encarregou de pilotar sua câmera de vídeo para que eu registrasse o parto. Registro este que faria parte de seus estudos e que contribuem para o aprimoramento dos partos executados por ele. É claro que havíamos permitido essa gravação anteriormente, mas até aquele momento não havia entendido que seria eu o seu cameraman. Como Alice estava absolutamente linda e tranquila em sua grande hora, eu que nunca havia tocado em uma câmera de vídeo, em pouco tempo relaxei e passei mesmo a me divertir com meu novo ofício. Me posicionei ao seu lado na cabeceira da maca e ensaiei meu plano, uma panorâmica que partia do seu rosto transformado pelas inúmeras e inéditas expressões provocadas pelas contrações, indo até seu ventre, de onde nosso obstetra coordenava suas ações para que o parto transcorresse da maneira mais natural possível. Com o plano escolhido por mim cada vez mais aprimorado e Alice surpreendentemente relaxada, passei a me concentrar na trilha sonora que já rolava solta no computador que havíamos levado. Queria que minha filha nascesse com a música certa. E ela teria muitas chances pra isso, afinal sua mãe havia preparado pessoalmente a playlist e um dos motivos de ter me apaixonado por ela, era nosso gosto musical afinado. Não tinha erro. Ao longo de todo o processo, algumas canções teriam se encaixado perfeitamente caso Olga tivesse antecipado seu nascimento. Não me refiro obviamente às minhas próprias canções, muitas delas em parceira com Alice, que por um jabá absolutamente compreensível neste caso, estavam presentes na trilha. Me lembro especialmente de “Minha Mulher”, do Caetano, não só por seus lindos versos iniciais e perfeitos pra aquele momento: “Quem vê assim pensa que você é muito minha filha, mas na verdade você é bem mais minha mãe”, mas porque no movimento da minha panorâmica, Olga teria nascido no exato momento em que Caetano cantava: “meu bichinho bonito, meu bichinho bonito, meu bichinho bonito, tudo é mesmo muito grande assim”. Outro lindo momento teria acontecido com “Vento Bravo”, de Edu Lobo e Paulo Cesar Pinheiro na antológica versão do disco Edu & Tom. Os versos que acompanharam meu movimento de câmera no que poderia ter sido o nascimento de Olga, eram perfeitos não só em seu significado, mas também no casamento entre música e imagem. Edu e Tom cantavam juntos “como um sangue novo, como um grito no ar, correnteza de rio, que não vai se acalmar”, quando Olga adiou mais uma vez sua chegada. Quando finalmente nasceu, estava tocando “Fever”, na versão de Peggy Lee, talvez a única canção que eu não teria incluído na imensa playlist de quase oito horas. Foi a primeira malcriação de Olga com seu pai.
“Não existe média em arte”, ouvi isso aos vinte e três anos de idade e nunca mais me esqueci.
Itamar se apresentava na TV cantando o repertório do seu disco em homenagem a Ataulfo Alves, quando meu pai passa pela sala de casa com a cara já fechada. “Quem é essa besta?”, me pergunta impiedoso. Comecei respondendo que era um cantor paulista chamado Itamar Assumpção, quando sou interrompido por ele: “Mas isso é Ataulfo Alves”. Respondi que sim e antes que pudesse continuar, fui mais uma vez interrompido: “Mas está tudo errado”. Inutilmente, tentei ainda explicá-lo quem era Itamar e que justamente sua intenção era recriar a obra de Ataulfo para além da simples homenagem, quando meu pai, já totalmente transtornado, desabafa: “Pode isso?”.
Quis lançar um coquetel molotov na direção de quem lançou um coquetel molotov contra a fachada do Palácio do Itamaraty em 2013.
Ao entregar meu disco Cão a Jards Macalé, depois de um show seu que eu acabara de assistir, disse a ele o quanto me influenciava e o quanto sua música, sobretudo seu primeiro disco, havia sido referência para aquele trabalho que acabara de presenteá-lo. Jards agradeceu e com as mãos sobre os meus ombros vaticinou: “Vai dar errado!”.
O que é bom custa caro.
Publicado originalmente na ed. 12 da revista Outros Críticos.
Fotos: José de Holanda
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