Pincelando espaços: a música de Walter Areia

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O Areia e Grupo de Música Aberta lançou em 2011 o EP Para Perdedores. Dez anos antes, o Areia Projeto lançava o disco Décima Lua. Walter Areia faz parte de outras bandas, como a Mundo Livre S/A, e em 2014 estreou no Terno de Areia, com Maíra Macêdo (bandola) e Hugo Linns (viola). Foto: Reprodução/DVD

por Bruno Vitorino.

O Recife nunca foi tão frenético. Saturação, eis a palavra que melhor poderia definir a cidade nos tempos atuais. Como em todo grande centro urbano da atualidade, a capital pernambucana sucumbe às consequências da correria desenfreada dos tempos de liquidez que oprime o indivíduo contra uma muralha de esgotamento moral e físico: vias públicas infartadas, coros de sonoridades ruidosas, gente e mais gente a se esbarrar, bombardeio de estímulos sensitivos fugazes, eternos compromissos, irrevogáveis atrasos; o caos. A cidade grita a exasperação! Nesse contexto, como atua a música? Como rota de fuga. Afinal, as pessoas não querem uma arte que as volte ainda mais para a realidade apresentada, querem, ao contrário, escapar dela. Entretenimento puro e simples é o que se espera. Um pano de fundo sonoro-imagético para a submersão na excitação dionisíaca da fantasia. Distração, extravasamento e frenesi; uma trindade sacralizada pela civilização do espetáculo. E os artistas locais, em geral, oferecem o tão precioso soma que cerceia os tormentos, amaina as angústias. A música enquanto elixir do delírio.

Em seu projeto autoral, o compositor e baixista Walter Areia propõe justamente o oposto do que oferece a indústria do entretenimento: a introspecção. Suas composições, ao invés de harmonizarem com as demandas lúdicas do Recife hipster, apresentam-se como um contraponto dissonante ao establishment pop cult, pois se voltam para o aspecto contemplativo, inesperado e íntimo do fazer arte. Seus temas instrumentais, de poucas notas e traços simples, são construídos sobre um alicerce modal de breve movimentação harmônica que dão à sua música um caráter ambíguo. A música é, afinal, aberta, logo as resoluções imperativas do esquema tonal padrão – IIm7 / V7 / IMaj7 – são por demais conclusivas para quem deseja eliminar ao máximo as amarras nas sessões de improvisação. Além disso, o uso dos espaços e a constante sensação de poco rubato contribuem bastante para a índole flutuante dos temas, de tal modo que se pode afirmar que Areia escreve não as notas, e sim, os silêncios. É o que ele deixa de fora do pentagrama que dá à sua música as infinitas possibilidades de interpretação que elas carregam em si. Como um arquiteto que, ao se lançar em investigações sobre a forma, começa por tentar entender a composição do vazio, Areia estrutura com pausas suas edificações sonoras.

Fruto da aprovação no Funcultura, o recém-lançado DVD do Areia e Grupo de Música Aberta faz um belo registro dessa música tão ampla. O disco traz uma apresentação do entrosado quarteto formado por, além de Areia (contrabaixo), Ivan do Espírito Santo (saxes soprano e tenor), Júlio César (acordeão) e Cássio Cunha (bateria), mais uma faixa extra com depoimentos dos integrantes sobre a música e o grupo. Ao que parece, todo o formalismo inerente à produção de um projeto tão grandioso não comprometeu a intensidade do combo. O que se vê são músicos inteiramente familiarizados com as composições e consigo enquanto parte e todo, transmutando o ato de tocar no exercício interpretativo dos vazios reais e subentendidos insuflados na música pelo compositor e dialogando entre si, dentro do clássico esquema “tema – improviso – tema”, através da construção espontânea do discurso poético. Como numa peleja de cantadores. Destaque para “A Joia do Universo” e a articulação modal do Si eólio com o Dó lídio que se impõem como realidades inteiramente distintas, mas indissociavelmente ligadas.

Em uma palavra: contemple!

Publicado originalmente em março de 2014, na 2ª edição da revista Outros Críticos.

 

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Bruno Vitorino Escrito por:

Compositor, baixista e colunista do blog Variações para 4.

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