JUNTAR*
O artista sem obras atua, em constante estudo e autodesignação, dentro de uma concepção de arte que tende a se perder quando extrapola seus limites, levando a preencher consigo mesmo nosso mundo.
Trata-se de uma abordagem de arte, e de artista, que encara e manipula a tensão que engloba o trágico da vida cotidiana e suas potencialidades; que se liga à qualidade do agir humano atento às energias latentes na vida e nas relações sociais nelas imbricadas.
Uma vez que a sociedade eurocêntrica alcança o aparente estado de “natureza vencida”[1] é gerado um novo conflito, expresso na contradição entre a abundância de bens materiais produzidos e na forma de utilizar esses recursos e da sociedade determinar de modo consciente os seus objetivos. Nesse contexto, no qual um sistema da arte é inevitavelmente constituído – e, rapidamente, assimilado por geografias periféricas –, o artista posiciona-se diante de um panorama de produção condicionado, onde trabalho e tempo passam a serem, invariavelmente, os principais produtores de valor das sociedades ditas modernas.
Nessa conjuntura, armada aos moldes que se mantêm na atualidade desde o começo do século XX, surgem os trabalhadores da cultura e a proliferação de vários profissionais para o funcionamento da indústria arte. Artistas, curadores, críticos, designers de expografia, educadores, administradores, patrocinadores, entre outros. Ao se juntar, esses empreendedores especializados se concentram na produção de bens simbólicos e discursos significativos.
Mas, nesse mesmo andamento, surgem grupos de agentes culturais progressistas que contestam esse cenário. Eram interessados em apontar os riscos de alienação e fetichização das obras e contextos envolvidos no processo de produção e disseminação cultural. Fundavam uma ação crítica por meio da vivência criativa no cotidiano, o que incitava, por sua vez, no desejo idílico de supressão entre arte e vida diária. Esses grupos buscavam ainda, a superação da antiga arte individualista e burguesa em nome de uma postura mais imediatamente revolucionária e coletiva.
Distantes do compromisso de gerar produtos que pareçam arte e da ideia de arte como criação de obra individual e única, esses grupos e posteriores artistas por eles influenciados direta ou indiretamente, convergem para uma recusa em produzir obras que não questionem a própria natureza do trabalho (ou do papel) do artista.
Ao se juntar com outras pessoas, o artista sem obras tende a construir coletivamente situações autônomas que, embora efêmeras e, contemporaneamente, não operantes da revolução almejada pelas vanguardas europeias, equivalem à realização de pequenas utopias de desvio. Desvio de modelos comportamentais reificados por hábitos e exigências sociais ditados pelo que chamamos de campo da arte.
Ele atua, assim, na formação de um “momento”, como formulado na Teoria dos momentos de Lefebvre; promove uma crítica ao cotidiano, negando o modo como este é organizado e mortificado pela forma abstrata assumida pela atividade social, na qual o trabalho na produção de obras não se exime.
Juntar-se, sendo um artista sem obras, na atualidade, acontece em um movimento dialético em que muitas vezes coabitam estratégias de autolegitimação e inserção em um sistema artístico, por reconhecimento entre pares, e refutação desse mesmo sistema pela economia de energia em trabalho especializado. Nessa acepção, recusa-se o desenvolvimento de competências exclusivamente artísticas, em favor de comprometimentos cotidianos diversos que revelam uma agenda cheia para quem toma como partido poético as reinvenções (e astúcias) subjacentes em Ser artista; nesse caso, sem obras.
A seguir: DEXISTIR
* Texto dividido em três pequenas partes/verbetes ficcionalmente intitulado de “manual”. Pretensioso como qualquer guia, este ambiciona fazer parte de uma estética das listas elencando apenas três situações sobre a arte como reinvenção de mundo e de modos de viver – a vida de artista, nesse caso, sem obras. O desejo idílico, obsessivo ou fracassado, por uma práxis criativa que ao se deparar com uma acumulação confusa de fenômenos mal definidos, propõe a ordenação de uma lista.
[1] Referimo-nos à célebre previsão en passant no livro Dos Novos Sistemas da Arte, do artista russo Malevicth, no qual profecia: “A natureza será vencida, pois minhas pernas não são nada em comparação com as rodas criadas por mim. O trem transportará a mim e a minha bagagem ao redor da Terra com a rapidez de um relâmpago. Comunicar-me-ei com as cidades fácil e confortavelmente”.
Foto: Robert Desnos-Man Ray
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