Papai vendeu o vinil de thriller: Casa Grande e Sinfonia da necrópole

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Foto: Victor Jucá

por Rodrigo S. Pereira

Não é novo o conflito entre cinema e televisão, entre profissionais do audiovisual, cinéfilos, críticos e (supostos, muitas vezes autoproclamados) entendidos do assunto. Também já não é novidade, em 2014, a aproximação dos meios, ainda mais no Brasil. Em 2013 chegava aos cinemas Crô (dir: Bruno Barreto), longa-metragem inspirado pelo personagem homônimo da novela Fina Estampa, criada por Aguinaldo Silva e dirigida por Wolf Maya para a rede Globo. Povo de riso fácil, os brasileiros consomem sem pudores filmes como esse, Se Eu Fosse Você (dir: Daniel Filho, 2006) e E Aí… Comeu? (dir: Felipe Joffily, 2012) e outros de uma extensa lista, uns melhores, outros piores, e se espera que consumam também Casa Grande (dir: Fellipe Barbosa, 2014), de lançamento comercial já confirmado.

Acontece que este filme foi exibido no festival Janela Internacional De Cinema Do Recife, em sua sétima edição, e o público do festival teve recepção mista. Há os que gostaram do discurso crítico, fundamentado em Gilberto Freyre e que em muito reverbera O Som Ao Redor (dir: Kleber Mendonça Filho, 2012), e há aqueles que não gostaram de sua forma, sua limpidez, estrutura narrativa rígida ou mesmo o elenco, que conta com as atuações particularmente boas de Suzana Pires (Sônia), Marcello Novaes (Hugo) e Clarissa Pinheiro (Rita). Trata-se de um filme bastante pessoal, como defende o diretor Fellipe Barbosa, sobre a falência de uma família.

Thales Cavalcanti interpreta Jean, o primogênito que recebe toda a atenção dos pais, muitas vezes frustrando a irmã de 14 anos. O rapaz mantém uma relação secreta com a doméstica residente Rita, e muitas vezes vai ao seu quarto à noite, onde assistem televisão juntos e conversam banalidades. A mulher não o deixa dar muitos passos em suas investidas sexuais, vendo graça no embaraço e teimosia dele. O rapaz também se confidencia com seu motorista, se mostrando muito mais simpático a eles que à própria família, para quem apresenta suas notas falsas de matemática, espelhadas de seu colega realmente estudioso que lhe fornece soluções em trabalhos e provas. Desejava cursar Comunicação na faculdade, mas é convencido pelo pai a tentar Direito e Economia.

“Casa Grande tem seu jeito de crônica brasileira, com seus ônibus lotados, professores exaustos e telefonemas de golpistas anunciando falsos sequestros.”

Casa Grande tem seu jeito de crônica brasileira, com seus ônibus lotados, professores exaustos e telefonemas de golpistas anunciando falsos sequestros. Com a falência de Hugo, Sônia torna-se vendedora de cosméticos para tentar manter a casa, mas alguns sinais da mudança de padrões são impossíveis de cobrir: o ar-condicionado central não é mais ligado; Jean agora dorme com ventilador. A jacuzzi, em uso por Hugo no plano de abertura do filme, também deve ser esquecida. O motorista de Jean é secretamente demitido, e seu processo contra os patrões mal é contestado pois, segundo Hugo, “nenhum patrão ganha processo trabalhista nesse país”.

Um extenso entrelace de situações e casos, Casa Grande diverte e intriga, mas parece lançar fios narrativos em mais direções do que consegue costurar. A centralidade de Jean na trama demonstra ser uma faca de dois gumes. Enquanto cria uma perspectiva segura para o espectador, sob o olhar irrequieto do adolescente, também vaga por questões cuja presença incomoda por não serem mais desenvolvidas, do machismo dos rapazes cariocas (“Chamou ela não, né? Dá o perdido, pô. Esqueceu como é que faz?”) à luta da caçula Nathalie por atenção, abandonando um jantar com a família e roubando dinheiro do pai. A menina demonstra muita consciência do que a circunda. Parece saber perfeitamente das condições dos pais, dos segredos do irmão e até questões políticas, mas é tão negligenciada pelo filme quanto o é por sua família, assim deixando um sabor amargo de personagem acessório (algo que uma força de eterna oposição). Também o discurso sobre divisão (e aproximação) de classes sociais deixa a desejar, como a separação ingrata de gostos musicais e hábitos de lazer: os ricos escutam música erudita em casa, passam domingos ensolarados na própria piscina e seus jovens vão a baladinhas à noite gastar 70 reais em 2h-3h de festa, enquanto as classes mais baixas se limitam aos ritmos populares como forró e samba e só frequentam locais que os tocam ou fazem seus próprios pagodes nas ruas de suas comunidades.

“Haveria portanto um problema real em Casa Grande, ou é meramente uma questão de gosto?”

Boa parte do público atribuiu à narrativa “plural” o caráter de “novelesca”, como que fosse uma história com demandas a suprir: a discussão social, o núcleo cômico, a empregada nordestina, etc. Fica uma dúvida, no entanto, se isto seria necessariamente negativo. As novelas são parte da vida do espectador brasileiro médio – e “espectador médio” refere-se a um dado estatístico, não uma (des)qualificação, como alguns frequentemente acusam – e não há mal algum em criar um produto voltado para atender à faixa de público mais numerosa, muito pelo contrário. Haveria portanto um problema real em Casa Grande, ou é meramente uma questão de gosto?

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Foto: Victor Jucá

Sinfonia da Necrópole (dir: Juliana Rojas, 2014) é outra comédia apresentada no festival, um musical “inspirado no teatro de Brecht, nos musicais da Disney e no cinema brasileiro da década de 80, como Lua de Cristal”, também dividiu opiniões. Seu humor também televisivo se aproxima muito mais de esquetes feitas para a internet que vêm dominando o mercado brasileiro do riso, com canais como Porta dos Fundos (Fábio Porchat, Gregório Duvivier, Clarisse Falcão e outros), e seu discurso de crítica social é mais discreto e irreverente, debruçado sobre a verticalização das metrópoles. Com canções escritas por Marco Dutra, o filme lança mão de alguns números musicais para desenvolver sua trama, da apresentação dos personagens a conflitos psicológicos do protagonista. Deodato (nome que exibe ao longo do filme uma extensa possibilidade para rimas), interpretado por Eduardo Gomes, é um jovem sensível que não consegue se adaptar ao trabalho no cemitério. Entra Jaqueline (Luciana Paes), funcionária do IML encarregada de reformar e reestruturar a necrópole, relocando tumbas sem registro e oferecendo sepultamento em gavetas num projeto vertical. Os dois trabalham juntos, mas Deodato mantém-se contrário à reforma, desejoso de respeitar o descanso eterno dos mortos sem nome.

Com realização feliz, piadas genuínas e narrativa segura, Sinfonia da Necrópole se apresenta como entretenimento despretensioso, mas em verdade suas pretensões só estão disfarçadas, bem tratadas, e apesar de escondidas, percebe-se sua enormidade. Não só a verticalização é criticada como outros aspectos da urbanização avançada e feroz de São Paulo, como o excesso de veículos e o consequente trânsito lento, a pressa e o estresse dos profissionais da cidade, tudo exposto em canção.

Ainda assim, o humor agridoce e a própria narrativa musical não são para todos os gostos. Sinfonia da Necrópole talvez tenha um público bastante específico, mais próximo de cinéfilos e jovens internautas. É injusta uma comparação direta entre este e Casa Grande, filmes com intenções tão diferentes, cujo público-alvo talvez não coincida? Há neles um modelo de comédia genuína, no qual o outro falha em seguir? Provável que não. Sinfonia da Necrópole está longe de ser indefectível, tendo seus momentos problemáticos com o elenco secundário e sua decupagem de planos médios e abertos que raramente se justifica, muitas vezes a cena e sua dramaticidade pedindo por uma plasticidade mais trabalhada.

“A própria existência destes filmes problematiza o meio cinematográfico, visto que ambos emprestam linguagens de outras vertentes midiáticas, televisão, internet.”

A própria existência destes filmes problematiza o meio cinematográfico, visto que ambos emprestam linguagens de outras vertentes midiáticas, televisão, internet. Ambos muito pessoais e pretensiosos, estão ali para divertir enquanto problematizam nossa realidade, e o público se divide. Muitos simpatizam com o discurso, discordam da forma. Outros, relevam a forma e atacam o discurso, o posicionamento de cada filme, como não há aproximação de classes, como há um humor vacilante e em certas sequências natimorto, como é absurdo que os personagens cantem no meio do filme. Em muito se critica o quão “televisivos” estes filmes são ou podem ser, mas é preciso tomar muito cuidado com este tipo de afirmação. Qualquer esforço “populista” (como tendem a ser as comédias brasileiras) é televisivo? Parece uma postura perigosa, e que pouco reverbera os contornos do próprio festival, que exibe em sua seleção de clássicos filmes como Os Caçadores Da Arca Perdida (dir: Steven Spielberg, 1981) e Mad Max 2 (dir: George Miller, 1981).

Se há um conflito, aos olhos do público “especializado”, entre o cinema e a televisão e as novas linguagens televisivas oriundas da internet, o que esses filmes propõem: uma batalha ou uma conciliação? Já há um tempo que em diversas críticas cinematográficas figuram dizeres como “nos tempos atuais, é preciso tomar uma posição”, de modo que tudo precisa ser atacado ou defendido com fervorosa paixão. Tal como o cinema não é uma arte exata, e as pretensões de um cineasta não são nada antes de seu filme ter o contato com o público e expressar-se por si, a crítica também deveria ser comedida, e separar mais precisamente a análise do gosto puro e simples. Há e deve haver cinema para todos os gostos.

Foto de capa do site:  Fellipe Barbosa, diretor de Casa Grande. Foto por Victor Jucá

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Rodrigo S. Pereira Escrito por:

Estudante de Cinema da UFPE.

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