Ocupando ruídos

“Estamos nos aproximando cada vez mais de um som-ruído”, escrevia Luigi Russolo, ainda em 1913, em seu manifesto “The Art Of Noises”. Para o pintor e compositor futurista, as máquinas da revolução industrial trouxeram com elas o ruído para o espaço sonoro:

“Não somente na atmosfera estrondosa das grandes cidades, mas também no campo, que até ontem era normalmente silencioso, as máquinas hoje criaram tanta variedade e concorrência de ruídos, que o som puro, na sua exiguidade e monotonia, não suscita mais emoção. (…) A arte musical procurou e conseguiu primeiro a pureza, a limpeza e a doçura do som, para depois unir sons diversos, preocupada porém em acariciar o ouvido com suaves harmonias. Hoje, a arte musical tornando-se cada vez mais complexa, pesquisa as combinações de sons mais dissonantes, mais estranhas e mais ásperas ao ouvido. Esta evolução da música é paralela à multiplicação das máquinas”.

A concepção de Russolo certamente é problemática (pureza? Ruído não-natural? Silêncio original?), mas representa um momento de virada na música, com o ruído e a materialidade do som assumindo o centro das reflexões estéticas da música do século XX. Mais tarde, em 1937, John Cage captou a sintomatologia da época no texto “O Futuro da Música – Credo”: “Enquanto no passado o ponto de discórdia estava entre a dissonância e a consonância, no futuro próximo ele estará entre o ruído e os assim chamados sons musicais”.

Desde então, o ruído foi ganhando pesos mais fixos ou mesmo institucionalizados em gêneros musicais. Surgiram tags inúmeras: noise, harsh noise, noise rock, japanoise, digital noise, power violence, power electronics, dark ambient etc. Amarras críticas que cedo ou tarde acabam caindo por terra. O que essas classificações não dão conta é justamente a pluralidade movente, o deslizante, a potência questionadora que o ruído instiga. O que está posto é a disputa política sensível daquilo se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo (Rancière). O ruído como uma arma, canalizada/domesticada/(moralizada?)/ritualizada em música. Matéria escura. Jacques Attali: “Com o ruído nasce a desordem e o seu oposto: o mundo. Com a música, nasce o poder e seu oposto: subversão”.

O “noise” oferece, enfim, um ataque às formas estabelecidas de comunicação, mas trazendo algo novo. Uma intervenção, um desafio que recria ainda um novo sistema. Análogo às ideias de Deleuze e Guattarri, uma desterritorialização, consistindo em se reterritorializar de outra forma, em mudar de território.

O músico e artista sonoro pernambucano Yuri Brusky, fundador do selo Estranhas Ocupações, foi um dos curadores da edição 2015 do Festival Internacional de Música Experimental (FIME), em São Paulo, que tinha o ruído como tema. A sua visão reflete bem os enfrentamentos políticos e culturais que permeiam a noção de ruído, para além da ideia musical. “Você tem determinados regimes de sensibilidade e regimes ou sistemas de escuta que conseguem se estabelecer, mas a relação de hegemonia não é um negócio epifenômeno ou supra-histórico: é parte de uma disputa pra significar, de como é que performaticamente a gente vai experenciar o mundo da vida, a linguagem, uma experiência concreta de vida ou a construção de determinado modo de escuta das coisas”, contextualiza.

“O ruído é interessante nesse sentido. Nem sou fã de Deleuze, mas nesse ponto eu acho interessante a discussão dele sobre desterritorialização. Acho que o ruído entra meio nesse sentido. Não é que nada se encaixe em coisa alguma, mas é essa a relação de dialética de inflexões críticas em determinados sistemas de significação. E isso eu acho que dá uma beleza meio cruel pro ruído. É sempre… não desestabilizador, mas sempre esse empurrão”, completa Yuri Brusky.

Um dos últimos lançamentos do Estranhas Ocupações, o disco-livro-objeto Breviário, do músico e filósofo carioca J.-P. Caron, é um cruzamento entre esses limites e limitações conceituais do silêncio e ruído, aqui sob um tom mais lírico e confessional. Caron afirma que a intenção de “Noisecomposition” (no disco registrada apenas como 11), por exemplo, é “de alguma forma encenar a passagem de uma totalidade vibratória que chamamos ruído para uma outra totalidade vibratória a que chamamos silêncio. E mostrar, talvez um pouco ‘cageamente’, que este silêncio não é muito silencioso, mas se comporta como ainda outra modalidade de ruído, caos ou ordem.  No fim temos diferentes variantes de ruídos povoando o disco, mas que chamamos normalmente por nomes diversos: barulho, silêncio, som, música, palavra, imagem”.

E mesmo sobre sua abordagem do ruído, ele esclarece: “O interesse para mim não está no uso ou não de ‘ruído’, no sentido normalmente alocado para essa palavra pelo noise. O mais importante é a disposição particular das coisas que pode ocasionar aberturas para ainda novas disposições naquele que ouve. Isso pode ocorrer com vários tipos de material, assim como vários tipos de material podem se tornar ‘ruído’ ao se articularem de maneira menos habitual”.

Esses rearranjos e reordenações catalizadas (por aquilo que chamamos) ruído implicam um tensionamento também na própria ideia de música. As ações de Henrique Iwao (fundador e curador da Seminal Records, junto com Caron) são indicações. “Trabalho com música experimental e afins”, ele ressalta. Parte desse afins inclui “fazer coisas menos óbvias”, como fazer fogueiras e chamar pessoas para queimar coisas (duo #09: potlatch!) ou então desidratar melancias (duo #05: desidratar uma melancia). Ele inclusive se refere ao termo “não música”, que diz utilizar como tags. “Quando eu uso antimusical, eu quero dizer ‘estou tentando ir contra características que eu considero musical’. E assim, obviamente, fazendo música. Nem sempre é fácil explicitar quais são essas características, mas às vezes esse esforço gera coisas interessantes, e depois de um tempo começo a achar elas bacanas, bonitas, não tão truncadas (vão virando ‘música’)”, comenta.

No disco e na performance de O Brasil Não Chega às Oitavas, Iwao trabalha a partir da prática não musical do panelaço sob um tempo estipulado como duração do jogo do Brasil (as três faixas do álbum são “Primeiro Tempo e Acréscimos”, “Intervalo”, “Segundo Tempo” e “Acréscimos”).  “A tentativa fracassada era ‘como eu posso reter essa não musicalidade específica dentro de um formato que transforma a coisa em música’”, explica.

As obras irmãs Éter (CD), Éter 2 (CD), 13 Horas de Nada (vídeo) e §6.4311 (proposição) são formas de retrabalhar o silêncio. Éter é apenas uma faixa de 74 minutos. O mostrador de tempo do aparelho indica quanto tempo se passou de música. “E você poderia acompanhar isso como uma não ação (não tem som), como uma ação (tem ‘não som’) ou então como falta de algo (não posso colocar outro CD porque só tenho um tocador e este já está ocupado)”, analisa Iwao. “A coisa que eu não gostaria é de despertar uma escuta mais atenta, ou que faz você ouvir os sons do mundo como música. Não é pra ser isso. Por isso tem os textos (do encarte), pra tentar conduzir os espectadores a não serem escutadores melhores”.

Éter 2 tem 36 faixas que progridem a partir do 1 milisegundo e crescem de acordo com a série, 2, 3, 5, 8, 13 milisegundos etc). “E se pensarmos em termos de mascaramento: não estariam os sons mascarando um silêncio subjacente? Um negativo de substância, vazios e nadas permeando. Ou então: soterrados. Tal qual a noção de espaço, quando lhe tiramos todos os objetos” (Iwao).

O ruído torna-se uma marca da condição humana na tecnologia – até quando tentamos remover o ruído, a impossibilidade iminente do silêncio é revelada. Éter (assim como 4’33’’ e outras tantas) explicita isso. Iwao: “Tem presença humana demais. Você vai num lugar e está marcado em tudo: ‘humano’, ‘humano’, ‘humano’. Se o ser humano se preocupasse mais em produzir silêncio humano, isso já melhoria um pouco, porque o tipo de presença gerado com silêncio se desfaz. Quando todo mundo está acostumado a agir, parar é uma ação mais difícil de fazer”.

A condição – ou presença – humana. Interessante notar como isso se manifesta de forma crua e quase primitiva nas peças vocais mínimas de Lílian Campesato. A mais representativa talvez seja o solo Fedra, que recria por meio de sons fisiológicos, sons da respiração, sons guturais, um espaço íntimo e agonizante em referência às lamentações praticadas em ritos funerários e as personagens femininas da tragédia grega, particularmente a imagem de Fedra. Neste caso, o ruído não reside apenas nas qualidades acústicas da voz, mas ao sentimento de dor, perda e desamparo ao qual ela remete. Relaciona-se também com o trabalho de pesquisadora da própria Campesato, que traz uma abordagem psicológica acerca do ruído – caso do artigo “Limite na música-ruído: musicalidade, dor e experimentalismo”.

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“Bella é uma entidade fantasma e atua desde os tempos sem nome. Bella se faz presente a cada aparição”.

Há também os afetos entrelugares. Alan Moore, autoproclamado mágico, diz que “a arte, como a magia, é a ciência de manipular símbolos, palavras ou imagens, para operar mudanças de consciência”. Cantar Sobre Os Ossos, primeiro disco da carioca Bella, empilha e satura em tape loop 23 músicas de vozes femininas (Mica Levi, Mulheres Cantadoras da Alma do Nordeste Brasileiro, Meira Asher, Junko, Ute Wassermann etc). Habitando limiares, fronteira entre aquilo que é e o que pode deixar de ser. (Dissolução do Eu?) Bella propõe: “os sons são e não são criados. Trabalhar com os sentidos de uma forma ampla é também trabalhar com uma mediação, no sentido de que é o caminho do meio”.

Enquanto performance, ela escreve:

“Bella é uma entidade fantasma e atua desde os tempos sem nome. Bella se faz presente a cada aparição. Há muitos níveis de visão. Só vê quem acredita. O limite é irreconhecível. Bella é canal. Se situa entre coisas e por isso deixa de ser coisa. Bella passa a ser coisa quando deixa de existir”.

Nesse sentido, o trabalho da curitibana Aline Vieira (do Excria Reverbera, Cama Desfeita, Corpo Código Aberto, entre outros projetos, além de fundadora do selo Meia-Vida e curadora do festival Perturbe) dialoga transversalmente com Bella. Flores Feias, seu último álbum, são riffs de rock em tom simples e sombrio que caminham ao hipnótico; deixar o corpo, rumo a um fora: – fora, fora, fora, corta, corta, corta, fura, fura, fura, tira, tira, tira.

A postura anarco-punk-lo-fi que tange as ações de Aline é ânsia pelo movimento – sintetizado em “Mover ou Morrer”, poema gráfico incluído no encarte do álbum A Necessidade de Produzir Sempre Foi o Antagonista do Desejo de Criar, do Concreto Morto. O desejo na potência de se recriar, deixar o corpo e tornar-se Outro. Externalizar-se, execrar-se, expelir-se, experienciar-se. No ruído de Fora, do Cama Desfeita: “Ruído é a via acidental, desviada, que resolvemos remar com, contra, através”. Nos resta ocupar as contrainvenções do ruído. E desatar os nós.

Publicado originalmente na edição #11 da revista Outros Críticos.

Imagem: Paulo Bruscky

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GG Albuquerque Escrito por:

Jornalista e mestrando em Estéticas e Culturas da Imagem e do Som pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Trabalhou como repórter cultural do Jornal do Commercio e da Folha de Pernambuco, escreve o blog volume morto e colabora com a Vice Brasil, Portal Kondzilla e Outros Críticos.

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