Existe uma velha dualidade que paira como um espectro na nossa história, é a dualidade entre corpo e mente (que Platão entendia como o mundo sensível e mundo das ideias) que trouxe dos gregos para os cristãos a mensagem que o mundo que é apreendido pelos nossos sentidos é falso, sujo e enganador, ao contrário do mundo das ideias (posteriormente compreendido como Reino dos Céus).
Como herdeira direta (e várias vezes não assumida) dos processos dogmáticos religiosos, a ciência pega a deixa e segue a tradição platônico-cristã continuando esse julgamento de valor onde o mundo das ideias está representado na linguagem matemática e, segundo Nietzsche na “confiança cega concedida a gramática”, onde descrições do Real, são consideradas Verdades, e não é dado o devido valor ao que é passivo de ser experimentado, o que se apreende com os sentidos.
Desse processo o próprio significado do termo Estética se degradou no senso comum, do termo grego Aisthesis (o que se compreende com os sentidos) para o estudo do “Belo como Verdade” no período moderno, e em seguida para qualquer atividade que trate do belo, dos cursos de história da arte aos onipresentes salões de beleza.
As oscilações das correntes de pensamento sempre fizeram com que os filósofos dessem maior ou menor importância para a estética: Aristóteles, buscava a verdade em uma ordem imanente ao mundo sensível (em contraponto à Platão, que a procurava no mundo transcendente das ideias) passando por Santo Tomas de Aquino que por volta de 1250 acreditava que nosso conhecimento é construído pela ação dos objetos sobre nós, isto é, pela nossa experiência percebida pelos sentidos, e que não podemos conhecer, sem que nossa mente (até então intelecto repousado em pura potência) tenha sido afetada por uma coisa apreendida como objeto pelos sentidos, e que isso é o que determina nosso ato intelectivo. Ou ainda em 1650, com Baruch Espinosa, que pensa nos afetos e, declarando que só podemos dar conta do que nos afeta, nos pergunta: “O que pode o corpo?”.
É claro que não se pode negar que essa forma de criar mapas com as linguagens tendo como objetivo tornar a complexidade do real em um conhecimento “útil”, levou a criação de um conjunto considerável de artefatos que moldaram nossas vidas. Mas o que fazer quando o discurso utilitarista despreza o papel da estética como outro caminho válido na construção do conhecimento? Como deixar de lado o momento em que somos transbordados pelos fenômenos ao nosso redor, num modo de raciocínio baseado numa Percepção Totalizante, uma verdadeira Compreensão pelos Sentidos? O que fazer quando se pretende tirar a arte das salas de aula, supostamente em nome da formação técnica necessária para aumentar a empregabilidade dos estudantes?
Essa reflexão surge com o anúncio de uma obscura reforma educacional, pelo atual governo posto no poder através de um golpe midiático-judiciário. Tal projeto, que nos chega através de Medida Provisória, sem intenção de diálogo com a sociedade, traz alguns termos do vocabulário neoliberal, como flexibilização e gestão mais eficiente. E tem como dois pontos polêmicos a retirada das disciplinas de artes e educação física, da grade curricular obrigatória.
O mais paradoxal é que essa abordagem, que se baseia em um utilitarismo onde a arte seria algo como um luxo (que terá lugar em algumas poucas escolas particulares), tem uma crítica contemporânea no próprio pensamento liberal, representada pelo filósofo coreano Byung-Chul Han, que alerta para o impacto da perda da capacidade contemplativa do ser humano. Capacidade a qual, pelo autor, é responsável por algumas das maiores diferenças entre nós e os outros seres do mundo animal. A busca pela capacidade de executar muitas tarefas ao mesmo tempo, e uma dificuldade de concentração nunca antes vista seriam alguns dos sintomas dessa situação. Tais sintomas que nos colocam em pé de igualdade com outros mamíferos que, na savana, tem que realizar várias tarefas simultaneamente, para não serem pegos de surpresa e devorados pelos predadores.
Então, como um breve resumo das ideias abordadas acima, se faz necessário (quase como num manifesto) essa chamada: mesmo que se considere que o papel das artes na formação do indivíduo deva se sujeitar a uma visão utilitarista, é válido pensar que para preparar nossas crianças e jovens para os grandes desafios que a vida traz daqui pra frente, precisamos retomar através da arte a capacidade de utilizar nossos modos perceptivos, lançando mão de um processo estético de construção de conhecimento, numa volta da nossa Faculdade de Sentir, com o objetivo de buscar também um entendimento do mundo que não passe apenas por processos reducionistas do raciocínio lógico, com suas detalhadas representações que não são o real. Pensar com os afetos causados pelos fenômenos que nos cercam em busca do que é aparente no mundo sensível, é crítico desenvolver assim outro modo de compreensão da realidade (cada vez mais complexa) que nos cerca. Pois, como dizia Oscar Wilde: “Só um tolo não julga pelas aparências”.
Imagem: H.d. Mabuse
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