Pouco antes de o show começar, Chas Chandler saiu da plateia e foi até a beira do palco para falar reservadamente com Eric Clapton. Perguntou se o guitarrista poderia convidar um músico norte-americano novato, seu fã, que estava por ali, para fazer uma participação na performance que o Cream faria, dali a poucos instantes, na Polytechnic School of London. O bandleader concordou. No meio da apresentação, como combinado com o ex-baixista do The Animals, convocou o jovem visitante para uma jam session de “Killing Floor”. Apenas o tempo de plugar o instrumento separou Jimi Hendrix da reação efusiva da plateia e da constatação de Eric Clapton: havia irrompido do nada alguém para ocupar o seu posto de Deus da Guitarra.
Quarenta e cinco anos depois da morte de Hendrix, podemos contar em poucos dedos os guitarristas negros em bandas de rock, ou mesmo os negros em bandas de rock ou até espectadores negros na plateia de um show de rock. Apesar de terem sido determinantes para o surgimento do estilo musical, vêm perdendo o protagonismo nesse gênero, assim como em outros.
“[…] podemos contar em poucos dedos os guitarristas negros em bandas de rock, ou mesmo os negros em bandas de rock ou até espectadores negros na plateia de um show de rock.”
Do início, desbravado por nomes como Bo Diddley, Fats Domino, Chuck Berry, Little Richard, o rock não demorou a passar às mãos dos brancos, a partir da chegada de artistas como Buddy Holly, Jerry Lee Lewis, Carl Perkins, Bill Haley e, mais notada e notavelmente, Elvis Presley. O advento do Rei do Rock serviu para atenuar o preconceito contra o gênero de origem negra. No entanto, funcionou como porta de entrada para a apropriação do mesmo pelos brancos.
A invasão britânica, na década seguinte, só veio reforçar o “branqueamento” do gênero musical. Capitaneado pelos Beatles, o levante de bandas do Reino Unido destrinchou o mercado americano para uma infinidade de artistas e grupos que viria a seguir.
Durante a ida aos EUA, os Rolling Stones, que carregavam uma escancarada bagagem de blues americano, ficaram horrorizados ao descobrir que muitos dos nomes venerados por eles, a exemplo de Muddy Waters, cuja “Rollin’ Stone” inspirou o nome da banda, eram desconhecidos, em sua própria terra, pela maioria dos jornalistas e apresentadores de TV.
Nos anos 1960, os artistas negros que despontavam na música pop estavam mais ligados a outro gênero, a soul music. Nessa década, a gravadora Tamla Motown, fundada em 1959 e voltada apenas para cantores negros, chegava ao seu ápice.
A Motown tinha o intuito de ser uma máquina de fabricar hits, pegando talentos brutos, genuínos e os transformando em produtos prontos para ingressar no mercado – dominado por brancos, tanto na parte artística quanto na empresarial. A gravadora funcionava como um mecanismo completo, oferecendo ao seu cast, além de composições com potencial de virarem hits, aulas de coreografia, etiqueta e estilo, banho de loja e de salão de beleza.
A empresa acabou desempenhando uma importante função de aplacar o preconceito contra os negros nos Estados Unidos, ao lançar alguns dos artistas mais queridos da América, como as Supremes, Marvin Gaye e Jackson 5. No entanto, foi acusada de tentar “embranquecer” seus contratados para serem aceitos, em pleno contexto em que os negros americanos sofriam ataques seríssimos motivados por preconceito racial e promoviam campanhas de fortalecimento da autoestima, como “Black Power” e “Black is Beautiful”.
Nesses mesmos anos 1960, em que o rock já estava dominado pelos brancos, Jimi Hendrix apareceu, roubando o posto de Eric Clapton e ostentando uma cabeleira black. Curiosamente, o líder do mais incomum power trio da época (formado por ele e dois ruivos ingleses) resolveu adotar o penteado mais por inspiração em Bob Dylan do que por autoafirmação da raça.
“A cena black americana ressoou no Brasil com mais evidência em dois estados, Rio de Janeiro e Bahia.”
A cena black americana ressoou no Brasil com mais evidência em dois estados, Rio de Janeiro e Bahia. No primeiro, inspirou a criação do movimento Black Rio e, no segundo, fortaleceu a formação de blocos afro que estourariam na mídia nos anos 1990, como Ilê Aiyê, Ara Ketu, Muzenza e Olodum.
O Olodum ajudou a projetar a “africanidade” da Bahia para o mundo, quando Paul Simon decidiu gravar com o grupo, em 1990, a faixa “The Obvious Child”, do disco Rhythms of the Saints (1990). Anos antes, o compositor havia ido à África do Sul para realizar o álbum Graceland (1986). O interesse do artista pelo continente africano surgiu depois que ouviu uma fita com músicas daquele país. O impacto daquelas canções foi tão forte que ele resolveu estabelecer contato com os músicos de lá. Desrespeitou o embargo cultural e comercial da ONU (devido ao Apartheid) e concebeu o disco, que chegou a ser apontado como uma tentativa de “roubo” do “som africano”, apesar de Simon ter creditado as parcerias.
Vencedor do Grammy e recorde de vendas, Graceland ajudou a chamar a atenção para a música e o continente africano. Paralelamente, o termo world music passava a vigorar no mercado fonográfico, embora como “gênero” servisse mais para abarcar o que fosse considerado exótico aos ouvidos do “mercado oficial da música”.
Dez anos depois, o Olodum ganharia novo foco, desta vez com a gravação de “They don`t care about us”, de Michael Jackson. Vale lembrar que, no início dos anos 1980, o cantor havia inserido o trecho de “Soul Makossa” (1972), do camaronês Manu Dibango, em “Wanna be startin’ somethin”, faixa de abertura do álbum Thriller (1982). Se a ideia partiu de Michael ou do produtor Quincy Jones, não se sabe, mas o certo é que uma pontinha da Mãe África estava registrada ali, no disco mais vendido da história, o maior triunfo comercial da indústria fonográfica norte-americana.
Em 1996, Michael desembarcava em Salvador para a gravação do clipe dirigido por Spike Lee, marcando a cidade para sempre. Até hoje, a capital baiana lembra o memorável evento que, para alguns, foi o contato com o cantor mais famoso do mundo, o Rei do Pop, mas, se olharmos com mais foco, também firmou o encontro entre membros de nações africanas espalhadas pela América: Spike, Michael e os músicos do Olodum.
Embranquecido pela maquiagem, para disfarçar o vitiligo, com nariz afilado por cirurgias e usando uma peruca de fios lisos, Michael, possivelmente negando seu passado e antepassados, pisava cheio de dedos no solo brasileiro que mais se orgulhava de sua cor e de sua origem.
“A influência da África na Bahia se vê desde o samba de roda, as cantigas da capoeira e Dorival Caymmi – estruturador do que hoje chamamos Música Popular Brasileira.”
A influência da África na Bahia se vê desde o samba de roda, as cantigas da capoeira e Dorival Caymmi – estruturador do que hoje chamamos Música Popular Brasileira. De lá surgiu uma variada gama de músicos que comprovam a vitória da biologia da miscigenação: João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Maria Bethânia, Gal Costa, Moraes Moreira, Pepeu Gomes, Baby Consuelo, Raul Seixas. Dessa terra, partiu a Tia Ciata, que, uma vez no Rio de Janeiro, abriu sua casa para rodas de músicos que fizeram surgir o samba.
Nos anos 1990, a eclosão de sucessos advindos de grupos baianos, sob o arcabouço da “axé music”, trouxe uma massificação e rapidamente um desgaste da imagem desses artistas. “Música baiana” virou praticamente um termo pejorativo. Daniela Mercury, que conseguiu vencer o preconceito em sua própria terra, por ser branca, dominou as paradas de sucessos do país, mas logo se tornou alvo de críticas na imprensa especializada. O mesmo aconteceu com as cantoras que seguiram seus passos, mais notadamente Ivete Sangalo. Advindos dos trios elétricos, esses nomes vêm se distanciando dos gêneros afro e investindo numa MPB sem força criativa.
A própria Música Popular Brasileira vem ficando cada vez mais branca. Ao que parece, nela foi criada uma espécie de casa grande e senzala. Hoje, boa parte dos músicos negros que despontam no país são vinculados ao samba ou ao rap, gêneros ainda estigmatizados. Atualmente, o tipo de música que faz mais sucesso no país é dominada por brancos, o famigerado “sertanejo universitário”, subgênero nascido a partir da célula do forró – de origem negra, no nordeste do país.
Os negros, que nunca ocuparam os altos cargos da cadeia produtiva dessa arte, sempre comandada por homens brancos, o que pode explicar muita coisa desse próprio mercado, agora se veem possivelmente numa ameaça maior, ao sofrerem um sutil ou não tão sutil assim apartheid cultural – e não estamos nem falando da presença ainda ínfima em setores como a da música erudita; mas, sim, da falta de oportunidade das classes menos favorecidas para a formação, o consumo e a produção de uma cultura mais diversificada.
“A diáspora africana, que trouxe sofrimentos profundos e seculares à população negra, serviu não somente para enriquecer os países que se valeram do trabalho escravo para crescerem economicamente, mas enriqueceu culturalmente o mundo.”
A diáspora africana, que trouxe sofrimentos profundos e seculares à população negra, serviu não somente para enriquecer os países que se valeram do trabalho escravo para crescerem economicamente, mas enriqueceu culturalmente o mundo. Contabilizar essa herança (harmonias, gêneros, instrumentos, temáticas, formas de cantar, dançar…) em sua totalidade é uma tarefa praticamente impossível. No entanto, não se pode – nunca – esquecer a dívida que se tem com os negros pela construção do universo musical do qual dispomos.
Nas últimas décadas, foram poucos os nomes que chegaram ao lado de cá, tais como Youssou N’Dour (Senegal), Cesaria Evora (Cabo Verde), Oliver Mtukudzi (Zimbábue), Angélique Kidjo (Benin), Fela Kuti (Nigéria), Emmanuel Jal (Sudão), Ladysmith Black Mambazo, Miriam Makeba e Vusi Mahlalesa (África do Sul). Mas isso tende a mudar, com o interesse renovado pelo continente e as atuais facilidades tecnológicas. Os artistas que antes encontravam dificuldades para ingressar no mercado internacional, regido pela indústria fonográfica norte-americana, hoje encontram, ao menos, na internet um veículo efetivo para divulgar seus trabalhos.
Gradativamente, essa influência vem sendo reforçada, a exemplo de bandas como Vampire Weekend e Tune-Yards, que exibem essa carga musical, e dos mais recentes álbuns de Siba e Alessandra Leão, que trazem influências da música congolesa. Principal atração do Coquetel Molotov deste ano, Emicida apresentou o show do último disco, Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa, realizado a partir de uma viagem à Africa.
De Sinhô, Pixinguinha, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Caymmi, Cartola, Miles Davis, Duke Ellington, Billie Holliday, Ella Fitzgerald, Moacir Santos, Baden Powell, Bob Marley, Peter Tosh, James Brown, Aretha Franklin, Gilberto Gil, Jorge Ben, Pinduca, Roberto Silva, Mestre Salu, Mestre Vieira a Jimi Hendrix, a África é um inquebrantável continuum cultural, fincado no sangue e na alma de incontáveis descendentes ao redor do planeta.
Publicado originalmente na revista Outros Críticos #10 – versão da revista on-line | versão da revista impressa
Foto: Gilvan Barreto
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