Esse personagem estranho do mundo da música não recebe os holofotes da crítica especializada ou da academia. Talvez, isso seja perpassado pelo aspecto negativo que muitos têm diante dessa figura. Para provar isso, podemos até citar o pesquisador e crítico musical inglês, Simon Reynolds, que no seu livro Retromania (2011) afirma que, para ele, os colecionadores eram apenas “loucos que fetichizavam formato e embalagem – vinis coloridos de sete polegadas, versões japonesas de álbuns” (p. 86-87), até que um dia, ele não pôde mais negar esse fato e narra de forma irônica a maneira que ‘percebeu’ ser um colecionador, “dos crônicos”, quando seus discos, além de lotar seu apartamento e o porão de seu prédio, ainda existiam outros guardados em uma unidade de armazenamento em Londres, cidade que deixara há quinze anos.
E de onde será que vêm tantas associações ruins ao colecionismo? Os próprios colecionadores, muitas vezes sentem uma relação culposa quanto aos seus objetos. Quando fui vendedor de discos, há um bom tempo atrás, pude observar diversas situações do tipo, e tirando o papel de vendedor, eu próprio um colecionador — que deixava uma quantia substancial do salário para a loja —, entendia os movimentos daquela caça, percorrendo com dedos e olhos várias prateleiras, garimpando os últimos lançamentos ou relançamentos. Um deles foi apelidado por um colega, carinhosamente, de Compulsivo, e toda vez que segurava as bolachas na mão, separava-as, devolvia-as, parava, pensava, pegava-as novamente. Era o jogo da indecisão.Talvez pensando se ia adiar aquela conta, ou comprar uma roupa nova que tanto estava precisando, ou ter o prazer de escutar aquele álbum que depois ia se juntar aos outros, na estante-altar de sua casa. Uma batalha cruel, mas, como movida pela paixão, cega, o disco geralmente era o vencedor. E como esquecer discussões entre casais por causa da bendita coleção? Sr. P., o nome não importa agora, geralmente sofria represálias de sua esposa, que achava que as constantes compras de discos não passavam de um grande desperdício de tempo e dinheiro. O Sr. M. não recebia uma repressão tão direta, mas a presença de sua respectiva implicava em saraivadas de olhares impacientes e uma corrida à poltrona vaga mais próxima.
O filósofo Giorgio Agamben sugere que todo colecionador é um grande fetichista, pois a característica definidora do fetiche seria a ausência. Ele parte da explicação de Freud, que fala que o fetiche nasce a partir da negação do menino da existência do pênis na mãe pelo fato de que isso representaria uma possibilidade de castração. Mas isso não seria tão simples como poderia parecer, criando um mecanismo “perverso”, onde o menino, percebendo a realidade, ao mesmo tempo a nega, substituindo o pênis materno por outro objeto. Esse objeto, por ser “presença de uma ausência”, tende a ser multiplicado exatamente por essa falta ser algo insubstituível. Daí o caráter infinito de uma coleção. E a infinitude, muitas vezes vai implicar que muitos dos discos ainda possam estar plastificados, e aí você pode questionar qual a razão de possuí-lo e até concordar que colecionadores demonstrem certo desequilíbrio. Porém, Walter Benjamin já afirmou que isso é um traço de todo colecionador, quando escreveu num dia em que desempacotava sua coleção de livros em seu novo apartamento, onde vários não haviam sido lidos. Um companheiro de angústia me falou o quanto estava incomodado com a afirmação de que colecionadores são seres egoístas, que guardam seu tesouro a sete chaves e não compartilham suas posses. Podemos até concordar com isso, mas o próprio Benjamin fala que as coleções públicas, apesar do bem que fazem à sociedade, não têm razão de existir, pelo simples fato de que colecionar implica identidade e memória.
O quanto meus discos podem dizer sobre mim, representar uma época, uma ocasião especial. Objeto-reflexo, mas só meu, paixão incompreendida por outrem, fetiche. Sim, fetiche. Palavra sórdida, evitada desde seu surgimento, além de explicada como perversão pela literatura psicanalítica. Segundo Peter Stallybrass, fetiche deriva da palavra ‘feitiço’ que começa a ser usada pelos navegadores mercantes portugueses para relatar o apego dos povos africanos à ‘quinquilharias’. O homem europeu moderno já saberia o ‘real’ valor das coisas, ou seja, o objeto só o interessaria se pudesse ser vendido para obtenção de lucro. E o fetiche causava medo e aversão, pois associado à feitiçaria significava dizer que o objeto pudesse exercer um controle, uma influência sobre o homem: “O que era demonizado no conceito de fetiche era a possibilidade de que a história, a memória e o desejo pudessem ser materializados em objetos que fossem tocados e amados […]”.
Por isso, como aponta o autor, o conceito desenvolvido por Marx de fetiche da mercadoria foi mal interpretado durante toda a história, inclusive sendo usado por correntes político-ideológicas contrárias para dar conta de uma sociedade calcada em um materialismo absoluto. De acordo com seu argumento, o problema para Marx não era o fetichismo em si, mas um tipo bem específico que era o fetiche da mercadoria. Quando uma coisa torna-se mercadoria, ela só é definida por seu valor de troca, esvaziando-se de seus significados, do trabalho humano, e até mesmo do seu aspecto sensorial. Por isso, o mundo capitalista é uma das sociedades mais abstratas que já se teve notícia, por se fetichizar o valor, o lucro, imaterial e invisível. Mercadoria fantasmática. Espectro de nada. Assim sendo, como iria refletir nossa imagem, lembranças, identidade? O mundo da coleção é um mundo feito a sua imagem e semelhança, preenchendo o tempo ou talvez até dominando-o, moldando as horas à sua escolha, tempo-espaço do eu. Advogo, então, um lugar especial dos objetos na vida das pessoas, mesmo daquelas que nunca colecionaram nada, mas que tiveram que se confrontar com a roupa que ainda tinha o cheiro do ente querido que se fora, ou que guardam a caneca que ganhou da avó com uma frase clichê dizendo o quanto ela era uma neta especial. Produzidos em série, de fato, mas trazendo traços de humanidade e guardando lembranças tão poderosas que podem fazer-nos voltar no tempo.
Talvez a materialidade inscrita nos discos de vinil possa explicar em parte a sua tão falada volta. É uma possibilidade que as pessoas estejam tentando voltar a ter uma relação mais ‘física’ com a música, de poder enxergá-la sendo tocada, de poder ver uma capa e encarte com mais detalhes, de sentir o peso. “Colecionadores são pessoas com instinto tátil”, já dizia Benjamin, ou para sermos mais específicos quanto aos LPs, nas palavras da pesquisadora Simone Sá: “(…) toda essa ‘construção cultural’ do par disco e toca-discos vai ser mediada pelas suas qualidades materiais e é a partir da materialidade que a paixão do colecionador é justificada”. Então, livrai-nos de toda essa culpa por amar e desejar artefatos, que possamos nos encantar pelo ‘feitiço’ que os objetos podem exercer. Que se exorcize a demonização do fetiche. Pois, uma forma de entendermos nossa sociedade é entender os processos de consumo, que está ligado diretamente à cultura, ou como melhor explica Simon Frith: “Se é através do consumo que a cultura contemporânea é vivida, então é dentro do processo de consumo que o valor cultural- contemporâneo deve ser localizado”.
Por Rafael de Queiroz.
Imagem de capa por Restos de Colecção.
Foto por vidaemvinil.wordpress.com
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: A Palavra e o Fantasma na Cultura Ocidental. Belo Horizonte: Edufmg, 2007.
BENJAMIN, Walter. Desempacotando minha biblioteca: Um discurso sobre o colecionador. In: Obras escolhidas II: Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 227-235.
_____________. O colecionador. In: Passagens. Belo Horizonte: Editora da UFMG; São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. p. 237-246.
FRITH, Simon. Performing Rites: on the value of popular music. Cambridge/ Massachusett: Havard University Press, 1996.
REYNOLDS, Simon. Retromania: Pop Culture’s Addiction to Its Own Past. New York: Faber & Faber, 2011.
SÁ, Simone Pereira de. O CD morreu? Viva o vinil! In: O futuro da música depois da morte do CD. São Paulo: Momento Editorial, 2009, p. 49–73.
STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
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