Música Engajada: Artigo + Playlist por Paes

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Arte: Paes

por Paes.

A arte, em qualquer tipo de manifestação, traz de volta ao mundo um reflexo do mesmo e das vivências dos indivíduos que a criaram, embora ela já esteja sempre exposta aos nossos olhos e ouvidos. É e se transforma no que agente quer. Entre todas as vertentes, a música tem uma importância muito grande na interpretação, reflexão e transformação das sociedades. Durante os séculos ela foi utilizada para muitos fins, em contextos distintos. Antes de existir o conceito de sociedade, desde nossos ancestrais, com seus rugidos animalescos, dos cânticos e danças dos povos indígenas nas Américas, dos africanos, aborígenes, gritos de guerra de tribos ou soldados, música de caça etc.

Posteriormente, com a evolução nos estudos em teoria e harmonia musical, com a construção de instrumentos de cordas e percussão, das novas possibilidades harmônicas, melódicas, dos sistemas e métodos orientais e ocidentais, a música foi ganhando papéis e espaços em variadas esferas. É consumida e criada de diferentes formas. Criaram-se barreiras entre classes, raças e crenças, poucas vezes vencidas. Quando surgiu o uso da oralidade, os caminhos se expandiram. A voz como um instrumento e também como catalisadora de uma mensagem escrita, por mais fútil que seja, abriu novos caminhos. No Jazz, no Blues, no Soul, no Rock ’n’ Roll, no Samba e seus lamentos, percebemos logo que acima de tudo, as mensagens falam além de temas românticos, sobre revolta a opressões, sobre injustiças.

Nas últimas seis décadas, vivenciamos momentos difíceis de luta pelos direitos humanos. Os movimentos, a citar entre outros, os nacionais: “Udigrudi”, a “Tropicália”, a “Vanguarda Paulista” e o “Manguebeat” marcaram a história, onde sugiram artistas e grupos com materiais contendo conotações críticas e analíticas, sobretudo como forma de se expressar, muitas vezes através de metáforas, em resposta às ditaduras impostas, às falsas democracias, à corrupção, à privatização de espaços, órgãos e serviços públicos, à desigualdade social e tantas outras questões que nos afligem a alma e o coração.

Hoje vivemos uma falsa democracia neste país. Não estamos bem. Poderia ser mais justo, mais igual. Os que estão no poder poderiam pensar no bem estar das pessoas. Os valores poderiam ser outros, e não baseados em números, cédulas ou hectares, muito menos na roupa que você usa ou o que tem na garagem. E como isso está bem disfarçado para a população através da manipulação das mídias, de “pães e de circos”, sinto que as pessoas e seus ideais se acomodam. As greves das classes trabalhistas, os protestos da população nas ruas, são consequências urgentes de nosso tempo. Não podemos deixar de sermos críticos. A música como contestação é um grito silencioso. Utiliza-se das ferramentas, do mercado, da audiência, da oportunidade de ser ouvido, da expectativa lúdica dos ouvintes e críticos para dialogar sobre assuntos indesejáveis, desconfortáveis, que quase sempre não gostam de falar ou mesmo questionar. É uma forma de dar o troco, transmitindo diretamente e com um poder misterioso, o que se quer dizer.

O grande papel do artista deve ser transformar-se e automaticamente mudar tudo ao seu redor. É fazer refletir, repensar, confrontar. Afinal, a arte, em geral, não é só entretenimento, mas sim o espelho da nossa relação com o espaço, os seres e o universo em que vivemos. E nele vemos muita beleza, mas também muita maquiagem.

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Música Engajada

Faixa a faixa

1 – Arte (Momo)

Do álbum “Cadafalso”.

O passeio de Marcelo Frota nesta “cidade entorpecida” é uma bela metáfora sobre o valor da arte, da troca, do amor, dos “baratos da vida”. Observar os pássaros cantando, as pessoas passando, o vento levando desejos nunca realizados. Com instrumentação simples e interpretação visceral, esta canção toca a alma e o estômago.

2 – O novo dia (Matheus Mota)

Do álbum “Desenho”

Matheus consegue nesta faixa falar da forma mais pura e simples, como uma criança brincando, de questões que todo artista passa pelo menos uma vez na vida, quando se depara com o fato de ter que acordar cedo, para ser aceito como igual na sua família, pelos amigos ou pela sociedade. Para ser visto como uma pessoa responsável. Ou de ter que ganhar dinheiro pra pagar as contas com seu ofício. Reflete sobre a arte como profissão, como ganha pão em um ambiente cada vez mais competitivo e hostil. Expõe também a dor de um amor perdido e a esperança de renascer neste “novo dia”.

3 – Veja só (Tibério Azul)

Do álbum “Bandarra”

A transição do músico por formatos, palcos, estúdios, parcerias e espaços geográficos é cada vez mais necessária no momento em que vivemos na indústria fonográfica e de liberdade de criação e distribuição de música com a internet e os avanços tecnológicos. “Veja só” trata de maneira lúdica, numa tragicomédia, dos sentimentos que um artista possui ao ter que se desapegar de coisas, pessoas e lugares para poder evoluir na sua carreira, na sua existência, aproveitando melhores oportunidades de mercado, que em sua maioria aqui se concentram no eixo Rio/São Paulo. É libertador, emocionante e inspirador. Durante a crônica escrita me identifico muito com as angústias e alegrias transmitidas. No final das contas me dá esperança e força pra continuar fazendo o que amo. Fala da importância das pequenas coisas da vida.

4 – Menino Preto (Thales Silva)

Do álbum “Minimalista”

O disco solo deste mineiro é para mim uma bela surpresa no cenário nacional. Thales nesta música vai direto ao ponto, sem arrodeio e com grande classe. Com melodia cativante e letra ferina, traz à tona a desigualdade, o preconceito entre raças e classes sociais. Não há metáforas, é sincera e delatora. Expõe todo o militarismo, o sistema político e midiático a os quais somos submetidos todos os dias.

5 – O deus que devasta mas também cura (Lucas Santtana)

Do álbum “homônimo”

Uma das músicas mais bonitas e profundas que ouvi nos últimos dez anos. Reporta-nos diretamente para a estória contada na letra. De alguém que observa “a fúria de um Deus” em resposta ao que o ser humano fez com seu semelhante e com seu meio. Com seu arranjo épico, faz trilha para um cenário imagético de destruição e reconstrução, ideia que se aproxima muito de alguns dos ensinamentos da filosofia hindu. Vejo uma cidade sendo inundada, suspensa da terra, vazia, inabitada. No meio deste aparente apocalipse surge um menino, salvo pelo Sol, por sua pureza e inocência. É quase bíblico, mas vai muito mais além do que religiões. Fala de nós. Por fim há a esperança na luz das estrelas e nas flores do jardim.

6 – Caverna (Rua)

Do álbum “Limbo”

É como Caio brada na letra: “o sol explode na cidade, a máquina sonha”. Caverna fala do congestionamento de pessoa, prédios, carros, fumaça, caos. Do medo. Deuses animais se erguendo do chão para reivindicar algo que lhes foram roubado ou ferido. A máquina tem vida, sonha e age de forma destruidora. A atmosfera é tensa e conflituosa. E a mensagem incomoda.

7 – The code (Ana Ghandra)

Do álbum “Slowly”

O código, a que se refere Ana nesta faixa é uma chave desconhecida. É a dúvida nas nossas bocas. No meio da guerra “santa” “um judeu cantando para uma garota palestina, sons feitos de vento. Ninguém ganha com esta guerra, ela sabia, então apague meus sinais, o código” (em tradução livre). Fala das guerras, dos conflitos entre povos, entre raças e com nós mesmos. Vejo um oráculo em forma de mulher dizendo a um humano comum que não é sua culpa e não há mais o que se fazer.

8 – The World Hipocrisy (Paes)

Do álbum “Sem despedida”

Pode parecer “ego-lombra”, mas escolhi esta faixa do meu álbum como se fosse apenas um ouvinte, me abstendo da responsabilidade e do peso de tê-la composto. Esta letra fala de como nós, cada vez mais, disputamos os espaços, os holofotes e esquecemo-nos de trocar, de se doar, de admirar e elogiar uns aos outros. A inocência e a humildade que existem em nós desaparecem e dão lugar a ganância, inveja e hipocrisia.

9 – That’s all right, mãe (Aninha Martins e German Ra)

Single

Com muito humor, característico no trabalho destes dois artistas, e uma leveza singela e sutil, esta canção é um pequeno/grande manifesto pela valorização da arte, neste caso, da música. O diálogo com a mãe é tão meu, nosso, que nos vemos claramente representados nas vozes descontraídas de Germano e Aninha. É de coração e cheia de verdade. Viaja no passado e projeta o futuro de forma sublime. Renova todo o oxigênio em nossos corpos cansados desta batalha que é ser artista e viver disso e para isso.

10 – Praia do Forte (Paes e Nascinegro)

Do projeto “Dois Sons”, do site/revista Outros Críticos

 Nesta feliz parceria com o duo Nascinegro, visualizo um homem sobre a areia de uma praia qualquer, sozinho, refletindo sobre a vida, sobre o “mundo louco”. Ele vê e sente seres de luz ao seu redor, o acompanhando e possivelmente o protegendo. Em outro instante ele se vê arrodeado de pessoas também descalças, sob a areia, juntos na mesma reflexão. É uma mensagem altruísta, de esperança e união.

Publicado originalmente para o site Caboco Satélite. Foto de capa do site: Renata Pires.

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Outros Críticos Escrito por:

Desde 2008 atuam desenvolvendo projetos de crítica cultural na internet e em Pernambuco. Produziram livros e publicações, como a revista Outros Críticos, além de coletâneas musicais e debates, como os do festival Outros Críticos Convidam.

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