(Parti faz 30 anos, fui Desmesura em tudo e sigo incomodando)
Muito contentemente inauguro este espaço de diálogo na Outros Críticos, uma iniciativa que acompanhei e admirei desde o início. Compor este time, então, é uma festa. E para principiar, então, não podia deixar de falar desta verdadeira obsessão que tem sido estudar, completam-se agora por dezessete anos, o universo e a produção artística de Raul Botana, o agora um pouco mais conhecido Copi, que assinava sob este pseudônimo. E mais, criar e recriar muito a partir dele. E ainda mais neste ano de 2017, estranho ano de retrocessos em tantos sentidos e numa geografia expandida de mundo, quando se completam 30 anos da morte de Copi. Novas “cruzadas” contra direitos humanos e tentativas mil de retroceder nos avanços alcançados só reiteram, porém, o quanto este artista multifacetado estava certo em suas provocações e o quanto segue, mais e mais, fundamental!
Para penetrar o universo que nos cria este artista múltiplo é preciso aguçar todos os sentidos, para as sucessivas surpresas que ele nos apresenta vertiginosamente. Somos provocados a ser testemunhas/ cúmplices/ voyeurs para fazer funcionar a máquina-teatro de Copi… E a provável experiência inicial que esta obra produz é um susto! Há um choque de percepção do mundo. Copi desestabiliza supostas verdades instituídas, propõe reviravoltas no modo de olharmos cristalizações de conceitos e visões anestesiadas. E, muitas vezes, é inevitável deixarmos escapar livremente o riso, mas muitas vezes há algo de nervoso… Foi, sim, um ser do teatro (dramaturgo e ator), mas foi também ficcionista (sobretudo de si mesmo) e desenhista de tirinhas cômicas.
Se a velocidade a que aludia Italo Calvino (em Seis propostas para o próximo milênio) deve mesmo ser um valor para a arte, Copi o fez, e com uma mente criadora que institui uma urgência de ficção viva: deslocamento permanente dos sentidos. Até a si mesmo ele ironizava, ficcionalizando-se sob todas as formas e em todas as circunstâncias, nada escapava ao seu humor sagaz e contundente: sexualidade, violência, amor, poesia, mundo intelectual.

Nasceu em Buenos Aires, em 1939; exilou-se em Paris com 16 anos de idade, onde se fixou até morrer em 1987, em decorrência da Aids. Filho de Georgina Botana e Raúl Damonte Taborda. O pai era jornalista e artista plástico; com ação política destacada (rompe com a ditadura do General Perón). As implicações familiares com arte e política vêm de geração ainda anterior: o avô materno uruguaio, Natalio Botana, fundou em Buenos Aires o notório Diário Crítica. De sua avó materna veio o apelido com que passou a assinar a vida inteira. Salvadora Medina Onrubia era mulher de ações contestadoras: anarquista, feminista, ligada à magia, dramaturga, mãe solteira ao casar e conhecida pelos casos extraconjugais com outras mulheres. Apelidava filhos e netos para evitar que fossem enfeitiçados.
Este ambiente familiar ligado às artes, à política, a uma liberdade de concepções e práticas pessoais, afetivas, sexuais refletirá no universo criativo deste artista, cuja vida foi também um exemplo de liberdade e contestação ao status quo. Dizia-se ‘tão de vanguarda que havia sido contaminado pela Aids antes de qualquer outro’. Era homossexual, ou melhor, uma personalidade “trans”: transitando como ator travesti, ficcionalizando-se como personagem, atuando como homem/ mulher/ gay/ animal e propondo um teatro sem rótulos, que não se enquadra em definições fixas. “O enigma consistiria talvez na resistência que sua obra gera quanto a uma classificação”, diz Noé Jitrik (2003: 12[1]).
Segundo José Tcherkaski:
Creio que isto é Copi: é a desmedida. Foi um excelente autor teatral e um grande ator. Mesclou o real e o imaginário de uma maneira tão poderosa e tão sublime que torna enormemente custoso ver-lhes a diferença. Podemos dizer que o teatro de Copi é um teatro de ação terrível. Este é o teatro de Copi: um teatro sem condicionamentos, porque Copi era impossível de condicionar, de enquadrar. É um provocador” (1998: 18-21[2]).
Copi integrou o movimento Teatro Pânico, do qual também faziam parte, entre outros, o chileno Jodorowsky (cineasta, poeta, tarólogo…), o espanhol Fernando Arrabal (um dos criadores do movimento) e o argentino Victor García, diretor da antológica montagem brasileira de O Balcão, de Jean Genet, em 1969, no Teatro Ruth Escobar. Assim, Copi torna-se ator e se apresenta travestido em peças do circuito alternativo parisiense. Na dramaturgia, sua estreia se dá em 1969, com Eva Perón, na qual Evita é interpretada por um travesti. Considerada um insulto, a peça o impede, mais por medo que por proibição, até aos anos 1980, de voltar à Argentina. Escândalo relembrado até hoje foi a estreia desta montagem, com o ator Facundo Bo no papel da primeira-dama e mito argentino Evita…

Em seu teatro, aposta na abolição da moral, da lógica, do realismo e cria uma ética sua. Seus personagens atípicos aparecem envoltos na loucura, na violência, no crime e na “anormalidade”, essência na construção dos enredos e das tramas com eventos vertiginosamente encadeados. Em peças como As Quatro gêmeas, Loretta Strong ou A Geladeira desfilam mulheres castradoras, homossexuais, travestis, marcianos, ratos, morcegos, cachorros, militares, mães e tantos outros seres. Trata-se de um teatro alucinante, estranho (para alguns até bizarro), que se ergue sobre hibridismo de gênero (humano e artístico) e sexual: o travestismo transbordante, o masoquismo, o sadismo e os assassinatos parecem produtos de loucura e delírio, mas arquitetados em profunda lucidez e argúcia de criticidade sobre os falsos moralismos e impedimentos à liberdade na sociedade patológica e castradora em que vivemos.
Trata-se, então, de teatro visceral em sua capacidade de entretecer, pelo imaginário e pela potência da cena, o riso denunciador e os absurdos do real humano, revelando um mundo rico e denso capaz de provocar e desestabilizar as ‘falsas’ verdades estabelecidas e as prisões identitárias (sobretudo quanto às ‘falácias’ de gênero e sexo).
Outro pesquisador que se debruçou sobre este universo criativo foi Marcos Rosenzvaig (também dramaturgo, ator e professor argentino), cuja tese de doutorado (do mesmo modo que a minha própria) é sobre Copi (no caso de Rosenzvaig, mais especificamente o teatro; eu enveredei por obras em prosa – romances e contos -, tirinhas e dramaturgia, além de vida e pensamento, impossíveis de dissociar da criação em Copi). Ao versar sobre a dramaturgia deste autor, Rosenzvaig se vale do início de sua criação artística como desenhista de comics, como se este début constituísse a entrada criativa bastante para tudo que produziria e, até, condicionasse a teatralidade copiana:
Um teatro que ocorre com a velocidade dos desenhos. Não há descanso, tudo é contínuo quadro a quadro. Copi desenha com os atores, e essa forma de conceber o teatro o torna criador de uma linguagem. teatro comic, a uma morte sucede uma ressurreição. Tudo é possível no mundo do desenho, e aí se enraíza a liberdade desmedida do artista: desenhar com atores. (2003: 17 – op. cit.)
Saltam aos olhos, na obra de Copi, fontes de referência cultural, tanto de sua cultura portenha de “origem”, quanto da europeia (o ambiente liberal parisiense, a literatura ocidental clássica e contemporânea a ele). Por exemplo, não há como não reconhecer incorporações, ironias e diálogos na obra de Copi com autores e obras como as de, entre muitas outras referências, Macedônio Fernandez, Jorge Luís Borges, Jean Genet e Anton Tchekhov.

Fica sempre a impressão de que há algo mais, dentro da “caixinha de surpresas”. Copi traz a vida crua ao espaço da criação artística; realiza na arte o que não se poderia na realidade. Em sua obra, trata do indigesto; critica com ironia todas as instituições: desde a sua própria condição de exilado (argentino-parisiense, artista underground consagrado em Paris – entre as décadas de 1970 e 1980), até a homossexualidade; os movimentos políticos de esquerda e os movimentos de direitos gays e lésbicos; os gêneros literários. Ironiza a prosa gauchesca, o melodrama, a tragédia, a ficção policial ou científica, e o faz como algo corriqueiro. Cria um mundo sem regras, onde tudo é possível, normal e permitido; um universo de profunda e radical liberdade do ser humano em seus mais diversos trânsitos: como um infante astuto, rege sua galeria de personagens que podem seriamente brincar de se reinventar.

E assim, venho atravessando nestes 17 anos uma sucessão de publicações de um livro sobre Copi (resultante do doutorado), artigos e textos diversos em congressos e revistas e programas de montagens de peças dele nas quais acabei por colaborar. Em 2004 me vi trabalhando em uma montagem de sua peça As Quatro Gêmeas com um grupo de atrizes em Lisboa (PT); depois foram surgindo mais e mais contatos e propostas. O ator e diretor Vicente Concílio, residente em Florianópolis, se converteu em mais um parceiro; ainda em 2013 – aceitando provocação do amigo, dramaturgo, ator e diretor Sidnei Cruz – assumi a cena para interpretar o monólogo Loreta Strong, em leitura dramática dirigida por Galiana Brasil (fizemos cidades como Recife, Rio de Janeiro e Petrolina). Depois, houve a provocação de Kil Abreu (à frente do Centro Cultural São Paulo), e Nélson Baskerville dirigiu outro monólogo de Copi (A Geladeira), com atuação de Fernando Fechio (e assistência de pesquisa minha). Em 2015, ampliando a visibilidade, acontece a Ocupação Copi – no SESC Copacabana (RJ) -, a partir de provocação do Teatro de Extremos (RJ), trupe dirigida por Fabiano de Freitas, que montou O Homossexual ou a dificuldade de se expressar. Acompanhando o evento, houve debate e palestras (nos quais, mais uma vez, estava eu falando sobre este sujeito-criador incansável Copi), e ainda a montagem de outra versão de A Geladeira, direção de Thomas Quillardet e atuação de Márcio Vito.
Agora, então, estamos debruçados sobre a criação de uma dramaturgia inspirada (e delirantemente ficionalizada, como ele mesmo fez em toda sua obra) na vida de Copi. Trata-se de Desmesura, texto escrito por Ronaldo Serruya (com colaboração minha) para montagem do Kunyn (grupo de teatro sediado em São Paulo), com estreia para o próximo dia 21 de abril de 2017, no Centro Cultural São Paulo. E sinto a tentação de escrever mais sobre esta produção, mas vou apenas deixar a curiosidade atiçada nos que me leiam, pensando em como se transformaram em cena as provocações de Copi (suas obras, seus pensamentos, as entrevistas e opiniões que deu, as mil leituras e reverberações do anedotário particular dele mesmo: como ter declarado certa vez “ser tão de vanguarda que a Aids o pegou primeiro que a qualquer outro”, ou o fato de seus amigos – entre eles um ex-namorado – terem fumado suas cinzas, após a cremação, acreditando estarem fumando marijuana…).
Entramos, pois, ao mergulhar neste viciante e fascinante mundo-Copi, em uma barroca “casa de espelhos”, em um país de maravilhas muito particulares, no qual o melhor dos mundos possíveis se instaura: aquele do teatro-comic, do teatro-desenho, em que até a morte pode ser reversível. Bem vindos ao louco Baile de Copi, onde somos nós todos os loucos e as loucas e a utopia final é a liberdade!
[1] Prólogo in: ROSENZVAIG, M. Copi: sexo y teatralidad. Buenos Aires: Biblos, 2003.
[2] TCHERKASKI, J. Habla Copi: homossexualidad y creación. Buenos Aires: Galerna, 1998.
Foto de Capa: “Loretta Strong” em Barcelona, 1978. Foto: Jorge Amat
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