.Anganga, o novo trabalho do músico Cadu Tenório em parceria com Juçara Marçal, é como uma voadora de pés juntos bem na ‘caixa dos peitos’. São oito faixas criadas a partir de uma investigação conceitual que funde a experimentação sonora ao resgate de forças culturais oriundas da passagem entre os séculos 19 e 20. Devastadora, a sonoridade ruidosa do álbum evoca o transe no ouvinte, como a mão de um sacerdote católico ortodoxo que mergulha a cabeça do fiel repetidas vezes numa tina de água durante o ritual do batismo. Ouvir Anganga é olhar nos olhos de um abismo e senti-lo inundar o próprio corpo pelo vazio da queda. É perceber a catarse como se fosse a primeira vez.
Lançado pelos selos Quintavant/QTV e Sinewave, o trabalho poderia ser relatado de forma objetiva como um disco de afro-noise. Noise já é um gênero musical indigesto, e, unido a ele está o vissungo, o canto dos negros escravizados trazidos de Angola para trabalharem nas minas de diamante de Minas Gerais. O resultado disso é um espesso tecido sonoro cujo potencial imersivo transcende a barreira do próprio som. A voz de Juçara é como uma tocha que ilumina o caminho, enquanto a instrumentação gerada por Cadu é a escuridão que repousa no interior da caverna.
Creditado no encarte do álbum por gravar “sintetizadores, objetos amplificados, cassetes, microfones de contato, bateria eletrônica, violão e violino preparados”, o músico cria várias camadas de texturas sonoras baseadas na extração livre de sons proporcionados pelo equipamento usado. É importante salientar isso porque, embora a tecnologia de áudio viva hoje o ápice de seu desenvolvimento, são muito poucos os sons que estão embutidos no imaginário popular. Em Anganga, a experimentação sonora tange os limites do próprio áudio, não necessariamente trabalhando harmonias, melodias e ritmos. Para que o ouvinte consiga mergulhar na obra, é preciso esquecer a ideia da música como um universo legitimado pela canção, pela composição linear/narrativa ou mesmo pela dualidade que a secciona brutalmente entre popular e erudita.
Anganga é contemporâneo exatamente por não erguer barreiras. Afinal, ao mesmo tempo que instrumentalmente o álbum vai além do que a maioria das pessoas se permite ouvir, Juçara resgata, através de sua bela voz, a narrativa ritmada e linear dos vissungos. A distância percorrida pelo disco em sua investigação artística é uma volta completa em torno do próprio eixo sob o qual orbita a música. Dessa forma, é possível até mesmo interpretá-lo por meio de imagens e, ao fechar os olhos, ser imerso num ambiente sonoro orgânico, sombrio e coletivo, regido pelo metrônomo da vida contido na passagem entre os segundos, os minutos e as horas.
Como uma performance teatral que usa a sombra para moldar o corpo do ator a formas desconcertantes, esse disco faz a música ser aquilo que o grande público não imagina que sequer exista. Essa particularidade, embora possa proporcionar o mesmo fascínio ou estranheza que uma animação virtual em 3D proporcionava nas pessoas na primeira metade da década de 1990, abre espaço para uma discussão muito mais profunda. Claro que tal caráter contemplativo da arte serve muito bem à nossa vida corrida e moderna, em que todo mundo mal tem tempo para escutar um disco ou assistir a um filme e, quando o faz, é num laptop de 15’’ e caixinhas de som que só respondem do médio para cima. Apesar disso, em que ponto uma obra de arte deve deixar de ser interpretada como entretenimento rasteiro para se tornar a matéria prima trabalhada pela vontade de saber e pela curiosidade de conhecer?
Essa é uma pergunta deixada em aberto, até porque o caráter orgânico da cultura se infiltra na vida mecânica a todo instante, exatamente como numa pintura do suíço H.R. Giger, onde carne e aço se fundem e se transformam num processo infinito. Pessoal, a reação a um disco, ainda mais no caso de uma obra tão complexa quanto Anganga, é uma reflexão que potencialmente trabalhará os miolos de cada uma numa frequência diferente.
À parte disso, é inegável que esse álbum faz surgir uma série de bifurcações semelhantes no caminho tomado pelo ouvinte em sua audição, das quais, sem dúvida, a mais intrigante é o fato dele soar relevante tanto na sua incursão sonora, quanto na sua gama de referências históricas. Assim, mesmo que seja uma obra de difícil audição para ouvidos não iniciados, o disco resgata a história do negro africano trazido ao Brasil para experienciar a proximidade do inferno.
Anganga é uma divindade do povo banto, bem como Canto I, Canto II, Canto III e Canto IV utilizam os vissungos entonados por Clementina de Jesus no disco O Canto dos Escravos, lançado pelo filólogo e linguista Aires da Mata Machado Filho em 1982. Esse aspecto antropológico somado à experimentação sonora intensa, faz com que o trabalho assinado por Juçara Marçal e Cadu Tenório seja, sobretudo, uma obra de arte. Relevante não pela simples documentação de um traço cultural, Anganga é o registro da sensação proveniente de um contexto histórico e estimulada através da percepção sensorial do ouvinte.
Publicado originalmente na revista Outros Críticos #10 – versão da revista on-line | versão da revista impressa
Produzido e arranjado por Cadu Tenório, mixado por Emygdio Costa e Cadu Tenório e masterizado por Emygdio Costa. Arte de Cadu Tenório, projeto gráfico de Mariana Mansur e fotomontagem de Tay Nascimento. O álbum é um lançamento dos selos QTV e Sinewave.
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