Como um meteorito contemporâneo a tomar de assalto uma tradicional paisagem urbana, a Casa da Música da cidade do Porto é também melodia para os olhos.
Saudações multicolores!
Se em agosto comecei minha existência de colunista, agora inicio minha existência de “correspondente internacional”, aproveitando a estada na cidade do Porto, em Portugal, para apresentar aos leitores de Outros Críticos a Casa da Música do Porto, verdadeira Gesamtkunstwerk[1] em ato e de fato. Para os que felizmente já a conheçam, permitam-me oferecer um outro olhar sobre o edifício, entendendo-o justamente como concretização de um diálogo entre a música e as demais artes, nomeadamente a arquitetura.
Pois.
Não é de hoje que a arquitetura, esta “forma simbólica[2]” tão específica, é utilizada por instituições as mais diversas para evidenciar sua presença, permanência e poder. Dos impérios da antiguidade aos atuais “templos da cultura”, vemos como natural, juízos à parte, esta associação entre importância institucional e visibilidade arquitetônica.
Deixemos de lado os empreendimentos especificamente “imperiais”, do Coliseu ao World Trade Center, passando pela megalomania hitlerista de Albert Speer, para lembrar que também a esfera da Cultura compartilha desta lógica de visibilidade e assombro. A Ópera de Paris, por exemplo, é lembrada não apenas pelo acervo musical que possui, mas (e talvez igualmente) por sua arquitetura, enquanto marco de uma cidade, de um país e de um programa ou visão de cultura nacional. O tempo passa e a tendência permanece. Os sequenciais lançamentos de unidades do Museu Guggenheim, citando outro exemplo, constituem eventos a chamar a atenção do mundo, a cada novo projeto arquitetônico apresentado.
A Casa da Música do Porto não foge a esta regra. Escrevo sobre ela porque, independentemente da lógica cultural que acabo de expor (e que merece certamente uma análise mais detida e crítica), o edifício corporifica tal lógica de forma extremamente feliz, ao congregar harmoniosamente sua própria intervenção, ao mesmo tempo vultosa e suave, com a história e a paisagem locais. Apesar de já ter escutado vários portuenses se referindo ao prédio como “o pedregulho da Boa Vista”, parecem mais consensuais na verdade o orgulho da cidade e a admiração dos visitantes. Descrevamos mais detidamente, então, esta “obra de arte”, reportando informações sobre o projeto (e fotos) gentilmente cedidos pela Assessoria da Casa:
A Casa:
“Em 1998, as cidades do Porto e de Roterdão são escolhidas como Capitais Europeias da Cultura para 2001. Feito o anúncio, põe-se em marcha um processo longo e complexo de gestão de meios, criação de programas artísticos, sociais e educativos sob a responsabilidade da recém-criada Porto 2001, S.A. Entre outras iniciativas, é lançada a promissora ideia da Casa da Música: um edifício de características únicas onde a Música teria uma residência.
(…)
Muita polémica se gerou à volta da escolha do vencedor. A comissão de avaliação dos projectos era composta por Pedro Burmester, Nuno Cardoso, Manuel Correia Fernandes, Eduardo Souto de Moura, Ricardo Pais, Manuel Salgado, Artur Santos Silva e Álvaro Siza Vieira. Se em alguns aspectos técnicos os projectos de Perrault e Viñoly se revelavam muito competentes, eram também mais ligeiros em forma e expressão estética. O projecto de [Rem] Koolhaas permitia uma adaptação universal dos espaços internos e externos do edifício, uma linguagem fluente e coerente na utilização de materiais de fácil manutenção e, acima de tudo, uma singularidade formal. A forte dominante visual do edifício viria a pesar na sua escolha, concordante com o propósito assumido pela Sociedade Porto 2001 de buscar para a cidade uma nova identidade, um marco, um ícone e ponto de referência.”
“Rem Koolhaas recupera um projecto anterior, a casa ‘Y2K’, para o transformar, moldar, expandir e, finalmente, adaptar a uma escala e um programa radicalmente diferentes. Revelando toda a sua proficiência e genialidade na metamorfose operada, apresenta uma Casa da Música que traduz uma afirmação de estilo, uma convenção estética, uma inconfundível marca de autor.
A principal característica do projecto é a continuidade visual que se estabelece não só entre o interior e o exterior, mas também entre os próprios espaços de referência dentro do edifício. Uma relação de mistério, uma ambiguidade que provoca os sentidos, uma sensação de ‘caixa de surpresas’ que acompanha o percurso do início ao fim.
Do que era para ser uma moradia com cerca de 200 m2, Koolhaas fez um edifício de carácter cultural de quase 38000 m2.”
O arquiteto:
“Rem Koolhaas nasceu na Holanda, em 1944, e estudou Arquitectura em Londres. É um nome de referência incontornável na arquitectura contemporânea, autor de uma obra marcada por inúmeras distinções, como o Pritzker Prize e o Prémio de Arquitectura da União Europeia Mies van der Rohe. Koolhaas criou em 1975 o OMA (Office for Metropolitan Architecture), em Roterdão, gabinete que, em 199, apresentou a proposta vencedora da Casa da Música do Porto. Em 2007 foi atribuído à Casa da Música o prémio do Instituto Real dos Arquitectos Britânicos (RIBA), com o júri a classificar o edifício de ‘intrigante, inquietante e dinâmico’.”
Tenho também, por meu lado, a forte impressão de que a contemporaneidade do edifício resistirá ao tempo, dado o recurso a elementos de simplicidade (o que difere de facilidade) que, por serem simples, entram no rol do atemporal.
Em relação ao presente, contudo, e por investigação própria, também apresento aqui dois vídeos, disponíveis na Internet, focados nesta dimensão “não tão exatamente musical” da Casa da Música: o primeiro, um curta-metragem de Fontaine Pham, Le Silence de la Casa da Musica, é para mim uma ode a casos, como este, em que podemos escutar esta “silenciosa música” da arquitetura. Isto de resto perece resolver o aparente paradoxo indicado acima, sobre uma obra ao mesmo tempo “vultosa e suave”. O outro vídeo, mais “dinâmico”, nos sugere as potencialidades realmente artísticas do Design de Identidades (aqui aplicado à Casa).
Esta é, enfim, minha impressão inicial sobre esta “instituição-casa-templo-pedregulho-obra-de-arte-musical-não-musical-público-privada”, geralmente povoada em seu entorno por gaivotas eventualmente barulhentas, skatistas eventualmente adolescentes e turistas eventualmente aposentados.
Quanto à Música em si, sinto somente relatar que a Casa não apenas é a sede da Orquestra Sinfônica (ou Sinfónica) do Porto, mas também acolhe a apresenta um fantástico leque de linguagens musicais (inclusive experimentais), num riquíssimo panorama disponível em www.casadamusica.com
Em novembro, por exemplo, não perco Elza Soares por nada.
Com os melhores cumprimentos,
J.D.
[1] Conceito originado no contexto operístico de Richard Wagner, Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”) é usado aqui de forma mais metafórica do que como indicativa de um real programa de integração total das artes, coisa que a história já mostrou ser mais difícil do que gostaríamos, feliz ou infelizmente.
[2] Ver Ernst Cassirer, Filosofia das Formas Simbólicas.
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