Fruir o fluxo

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Foto: Divulgação/Mojav Duo

Como músico, minha compreensão do verbo “improvisar” sempre esteve ligada ao domínio de uma técnica densa e sofisticada, requisito essencial para navegar territórios como o jazz. Ainda estudante de música, procurei a improvisação quando quis ir além da tarefa de seguir partituras e aperfeiçoar interpretações para tentar conquistar alguma liberdade em relação ao uso do meu instrumento. Mas minha carreira de improvisador teve um fim antes de começar, quando me dei conta de que repetir exaustivamente escalas e estudar progressões harmônicas era algo que eu não estava disposto a fazer, por falta de afinidade ou excesso de preguiça. Acabei indo buscar a música fora do sistema dos conservatórios e da universidade, e reencontrei o improviso no mundo da dança.

O Contato Improvisação, como o próprio nome já deixa perceber, utiliza o contato como ponto de partida para a improvisação com o próprio corpo. É difícil ir além de uma definição vaga, pois este modo de pensar o movimento assume várias formas e mistura-se com várias técnicas nos diversos lugares do mundo onde é cultivado. Este pensamento me abriu uma nova perspectiva para a experiência de improvisar: ao mesmo tempo em que a liberdade é imensa (não há necessidade de treinamento prévio nem do domínio de um vocabulário técnico específico), o nível de concentração, de escuta e de mobilização de recursos interiores precisa ser igualmente profundo para que o processo valha a pena. Meu encontro com o Contato Improvisação foi também um encontro com o Mojav Duo, que passou a tocar nas jams[1] organizadas pelo Coletivo Lugar Comum, grupo de artistas do qual faço parte. Convidamos Fred Lyra (colega dos tempos da faculdade de música, que abandonei) e Hugo Medeiros, principalmente por causa da reflexão e do cuidado com que encaram o trabalho: nenhum de nós queria apenas um fundo musical. Por isso, posso dizer que improvisamos juntos em várias situações, pois músicos e movedores interagem o tempo todo, como não poderia deixar de ser em um evento que leva o nome de jam, na melhor tradição dos encontros entre músicos de jazz. Escutando as gravações enviadas por Hugo para que eu escrevesse este texto, reconheço na sonoridade os movimentos das jams.

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Conrado Falbo (à esquerda) na Jam Session do Coletivo Lugar Comum. Foto: Juliana Brainer

Toda improvisação parece liberar um tipo de impulso de continuidade, que termina desencadeando uma série de estratégias para que seja possível seguir em frente. Acontece que todas estas estratégias podem ser subvertidas, e são (ao menos por improvisadores atentos), sempre que a oportunidade se mostra sedutora e a vontade responde com movimento. Som é movimento, e talvez a natureza da improvisação seja não ter natureza alguma além desse impulso de manutenção do fluxo. Até questões simples, e aparentemente lineares, como orientação e sentido ganham outras dimensões no improviso: andar para frente, por exemplo, não significa necessariamente seguir reto ou manter-se no mesmo plano. Aliás, a própria noção de “frente” é sempre uma questão referencial, e os referentes mudam o tempo todo. A música de Fred e Hugo mostra que eles sabem muito bem como traduzir em som estas questões. Afinal, estar “De costas pro céu”, “De costas pra si” ou “De costas pra terra” não quer dizer perder um ponto de vista, mas ganhar novas possibilidades de enxergar. Da mesma forma, “Vozes do além” podem soar familiares porque vêm do lado de dentro.

Moja Duo – Vozes do Além from Mojav Duo on Vimeo.

Para mim, a palavra “fluxo” sugere um movimento líquido e rápido, mas o fluxo sonoro do Mojav Duo me lembra que este movimento pode adquirir feições bem diferentes. Percebo uma característica percussiva que prevalece mesmo nos momentos mais “sustenidos”, como em “Um que resta” ou “Gradus”. E escrevo isto pensando principalmente na guitarra, já que a bateria algumas vezes aparece justamente distendendo os sons, em contraponto a este fraseado construído pelas cordas na base do staccato. Pode ser que isso seja algo propositalmente perseguido pelos músicos, ou pode ser que eu esteja ouvindo além da conta. De um jeito ou de outro, a escuta deixa claro que o trabalho rítmico é uma preocupação central para a dupla, o que equivale dizer que o tempo é algo que tem uma importância consciente para Fred e Hugo.

02. Mojav Duo – De Costas pro Céu by outros críticos

Nossa concepção do tempo ainda é predominantemente linear, mas o fluxo de uma música como a do Mojav Duo muitas vezes conduz ao ciclo. É uma falsa repetição, um som que não soa sobre si mesmo, mas desenha novas possibilidades cada vez que pensamos ouvir uma frase já conhecida. Talvez o improviso, mais que qualquer outra atividade premeditada, explicite que a repetição é algo impossível quando se espera alcançar um mesmo resultado. Cada vez que escuto as gravações, vejo que minha posição de ouvinte também muda, assim como meus pontos de referência na escuta. Não é suficiente dizer que cada gravação é uma versão entre infinitas possibilidades que dependem do momento da performance: também a escuta é um tipo de performance que não depende apenas da vontade e da ação dos músicos.

A música é uma arte de performance. Essa afirmação parece óbvia, mas frequentemente não se reflete nem na formação nem na conduta de um número assustadoramente grande de artistas atuantes em vários gêneros. Escutar o Mojav Duo me deixa contente em perceber que existem músicos que enxergam além do exibicionismo técnico e estão preocupados com a abertura para a comunicação, uma abertura que não pode ignorar a mudança, mas precisa abraçá-la e incorporá-la ao próprio fazer. Sem isso, não é possível fruir o fluxo.

por Conrado Falbo.

Publicado originalmente na coletânea no mínimo era isso: 10 bandas, 10 ensaios


[1] Assim como acontece no jazz, os eventos em que pessoas interessadas em Contato Improvisação se encontram para improvisar são chamados de jams.

 

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Conrado Falbo Escrito por:

Músico, performer, professor e pesquisador.

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