O MESMO NOME
O menino correu para ver o que juntava aquele povo todo. Teve que se esgueirar entre corpos maiores, como é costumeiro aos pequenos mordidos de curiosidade. Havia gente pra todo lado. Nas janelas, nas portas das casas. A maioria do povo nas pontas dos pés, as cabeças como alfinetes enfiados no fato recém acontecido. Ele conseguiu após vencer a barreira de uma senhora gorda e as pernas zambetas de um homem alto.
Três ou quatro o arrastaram pela calçada, enquanto o resto assistia. Alguém gritara que ia morrer. Um taxi parou, os homens confabularam com o motorista, que balançava a cabeça negativamente. As pernas do homem dobradas para fora do carro como uma folha de papel amassada numa quina. No fim das contas lá vinham de novo arrastando o que nem parecia mais gente. Quem chegava, repetia as mesmas perguntas: “Está morto?” “Atropelamento?” “Tiro?”. E parecia haver já um consenso geral que os mais inteirados do assunto repetiam com grande convicção: “Coração!” “Ataque!” “Infarto!”.
Um homem gordo tentava contar a todos o que ele mesmo viu, presenciara tudo desde o início. Alguém falou de uma farmácia, a mais próxima. Um grupo se dispôs a carregá-lo. Era um homem grande, dava trabalho. Na esquina recolocaram o corpo no chão, o menino juntamente com um bando de gente acompanhou o cortejo improvisado à distância. Os que se dispuseram a carregá-lo, por sua vez, foram aos poucos e sorrateiramente se afastando. Abandonaram a posição de protagonistas e se dispersaram no grupo maior que, à distância e passivamente, contemplava o silêncio do corpo reacomodar-se na calçada da peixaria. Não demorou para as moscas também o descobrirem. Encheram-lhe o rosto.
A maioria já tinha se dispersado. O menino ponderou que talvez estivesse tarde, mas sabia que não podia voltar pra casa com as mãos vazias. Tiraram-lhe as coisas, documentos, objetos e puseram sobre a camisa branca. Quando a polícia chegou uma multidão correu para ver o desfecho. Quando a viatura abriu caminho quase atropelando o cadáver, alguns o pisotearam, tropeçaram nele. O tanto de gente que o carro de polícia espalhou só era menor que o tanto de gente que ele atraiu. Dali a um pouco a polícia gritou que abrissem espaço para o carro funerário que estava a caminho. A frase: “Morreu!” espalhou-se que nem gripe.
A multidão se dispersou, e o defunto não atraia mais a atenção de ninguém. O menino viu que tinham colocado seu paletó, todo enrolado como um travesseiro, sob a cabeça. As mãos cruzadas sobre o peito como nos filmes. Uma senhora estendeu uma vela para ele e fósforos, com um gesto incitou-o a colocá-la perto do cadáver. Ele que até então acompanhava tudo à distância ficou próximo suficiente do corpo para nunca mais esquecer a sensação. Acendeu a vela. Seus olhos brilharam ao ver a aliança que o morto ainda tinha num dos dedos da mão esquerda. Mas não tinha chance alguma, a polícia rodeava o morto e inspecionava tudo com olhares de abutre. Afastou-se novamente.
Passou-se muito tempo até chegar o outro carro, negro e maior. Frustrado, aceitou a derrota e a o fato de que voltaria para casa sem levar nada. O pai era rigoroso, esperava-o há umas duas horas pelo menos. O cipó do castigo correndo entre as mãos, ansioso por mostrar ao pivete que naquela casa todo mundo tinha que cumprir a sua parte. O menino decidiu, um pouco antes de entrar no casebre, já todo encharcado pela chuva, que não falaria nada para o pai do ocorrido. Ele não acreditaria que não tivera chance, diria que tinha sido preguiçoso, que se esforçara pouco. A mão grossa ficaria mais pesada.
Mal entrou em casa e ouviu o pai dizer, diante de sua expressão desamparada: “Nem se apresse pivete, que você hoje vai aprender que é melhor roubar do que morrer de fome!”. Dario não tinha o que fazer, só moveu o corpo quando os primeiros golpes acertaram-lhe as pernas. Caiu já chorando. Lá fora a chuva descia com vontade lembrando que todo morto tem o mesmo nome.
por Dalton Trevisan e Fábio Andrade.
O conto de Dalton Trevisan – “Uma vela para Dario” foi o ponto de partida para o roubo deste mês. Pode ser lido em Releituras. Nascido em Curitiba, Dalton Trevisan é talvez o escritor brasileiro mais avesso à exposição pública. Seus contos têm secura e objetividade ímpares. É um mestre do conto curto, cortante e memorável.
Arte de capa por Imarginal.
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