DEDICATÓRIA
O calor louco atravessava paredes e se jogava sobre a pele, pegajoso. Ele pensou em sondá-la sobre o que exatamente a cabeça dela martelava. E martelava. Alguns meses juntos. Não significava nada. Ou melhor, significava muito. O avô dizia que, às vezes, se conhece alguém pra vida toda em poucos dias. Pena ter ignorado isso anos atrás, pena ter ignorado muitas outras coisas anos atrás. O destino derrapou, dizia a ela, aconteceu algum desvio, quando alguém mexe nos trilhos sabe, e o mecanismo desvia todo o trem para o outro trilho. Ruminavam juntos, ele mais triste que ela – ela na verdade irritada – as últimas ofensas. Tem gente que começa a apodrecer pela língua, mesmo antes de morrer.
Havia muito barulho, muita gente. As ideias passavam como um rio furioso pelos seus olhos, vivos e grandes.
Sentia que ela não estava ali. Não é que não estivesse com ele, mas é que não estava ali. Havia uma pulsação desesperada esperando o momento certo para seguir um outro ritmo ou mesmo explodir. Pensou no presente guardado na primeira gaveta do guarda-roupa, com a dedicatória escrita. Quando o daria? Ela olhou para as escadas como que pedindo, quase numa súplica, para abandonar a alegria que não era dela, os remendos de conversa que não lhe pertenciam, os sorrisos cansados que não lhe diziam nada.
A ele restou apenas o silêncio como forma de atenção aos seus gestos, ao que se passava dentro dela. Não podia poupá-la disso. Não podia poupá-la de nada.
Ela ia embora. Era doloroso, mas não havia mais nada a dizer por enquanto. Não se pede desculpa pelo próprio passado.
Vou pra casa. É. Já. Enxaqueca.
Esperava que aquele desespero, aquela agonia durassem um ou dois dias, e pudessem se encontrar de novo. Perder-se dela estava fora de cogitação. O passado não é desculpa para não viver a vida de verdade. Assistiu ela descer as escadas e permaneceu sentado, o banco ao lado vazio. O barulho, os sorrisos, as conversas. Por dentro os medos iam e vinham, enquanto ele justificava para si mesmo os motivos dela, sua raiva, talvez o seu cansaço. Talvez devesse dar mais espaço para que ela se recompusesse daquelas pequenas guerrilhas repetitivas. Para ele mesmo era difícil, além do que…
Ela de volta, na ponta do salão. Procurava-o. Cabelo assanhado, descalça. Ele ficou sem ação e sem saber o que pensar. Esperou, refém de uma alegria inesperada. E ela veio, como um raio, sem hesitar, sem dar espaço para nenhum pensamento. Chegou e, sem nada falar, subiu no banco ao lado. A cabeça dele ficou na altura da sua cintura. Então ela, na ponta dos pés, levantou a saia e puxou a cabeça dele, pra debaixo dela.
Cúmplices novamente desceram as escadas. Agora podia dar o presente que tanto queria a ela.
por Fábio Andrade e Mariana Nepomuceno.
Mariana Nepomuceno é escritora, jornalista e aniversariante do mês de abril. Sempre preocupada em saber se seus textos são crônicas ou contos, escreveu “A natureza” em seu blog, de onde eu roubei a minha matéria-prima desse mês.
Imagem de capa: Reprodução da obra de Yoko Ono.
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