Estórias Roubadas #5

TRÊS DIAS

Era simples o hábito. Todo dia, à meia-noite, acordava, levantava-se cuidadosamente e, em silêncio, deixava a esposa dormindo no quarto. Passava pela porta entreaberta dos filhos e seguia para a pequena biblioteca contígua à sala. Conseguira esticar parte da sala e transformá-la em biblioteca na última reforma, dois anos atrás. Os livros todos finalmente ganharam mais espaço, passaram a respirar melhor, menos sujeitos a polias, traças e cupins. Deixaram definitivamente o quarto dos fundos, que já havia sido dispensa e depósito de entulho. O “quarto da bagunça”.

O hábito surgiu muito naturalmente, já que ao longo do dia os filhos pequenos, as preparações de aula, os projetos de pesquisa, as avaliações de comissões, as orientações de bolsistas, os projetos de extensão… impediam-no de ler. Mas um dia, enquanto lia uma seleção de poemas das Flores do Mal numa tradução brasileira, teve a impressão de alguém passando próximo à janela, caminhando no jardim em frente à casa. Levantou-se, foi até o janelão e esticou o pescoço, a cabeça próxima ao vidro. Viu a sombra esgueirar-se entre as rosas, tulipas, margaridas e gerânios. Conseguiu ver, inclusive, quando o vulto encheu a mão com as flores do seu jardim; parecia, ainda com cuidado, dividi-las em ramalhetes que foram se somando embaixo dos braços, enquanto abraçava o curioso furto do seu roubo. “Não é nada”, pensou. Ficou se perguntando onde o diabo do cachorro andava que não serviu sequer pra assustar um ladrãozinho safado. E voltou para sua leitura. Às duas da manhã, levantou-se e caminhou pelo corredor de volta para o quarto.

No dia seguinte, na mesma ordem do dia anterior, que era, por sua vez, a ordem da semana e do mês anterior… jantou, levou o cachorro pra passear, tirou dúvidas escolares dos filhos, pôs eles na cama, terminou a novela, deitou com a esposa e dormiu. Acordou na mesma hora de sempre, calçou as sandálias e se dirigiu para a biblioteca. Dessa vez, porém, diferente da noite anterior, não foi um vulto que atrapalhou a leitura do canto nono do paraíso da Divina comédia. Via nitidamente o homem parado em frente à janela, ele tinha caminhado até ali pelo jardim, devia ter pisado nas flores todas para poder se colocar daquela maneira, quase rente ao vidro. Nervoso, ainda sentado na poltrona, viu que ele não estava só. Houve uma movimentação do lado de fora da casa e ouviu finalmente o cachorro latir. Latiu bastante – pensou até que Letícia e as crianças acordariam –, mas os latidos foram ficando esganiçados, transformando-se num rumor baixo, quase irreconhecível. Tinha certeza que de que “Thor” estava morto… o que diria aos filhos? “Não é nada demais” pensou.

Na terceira noite, algo havia mudado. Jantou, conversou longamente com os filhos sobre a vida e a morte, deixou que dormissem no quarto com ele e com a esposa, ficou acordado, tomado pelo medo. À meia-noite seguiu titubeante pelo corredor até a biblioteca. Pegou um livro qualquer. Viu depois que eram os poemas de Safo, traduzidos pela primeira vez para o português e direto do grego. Lia e observava a janela, mal se concentrava nas doces palavras da poeta de Lesbos… começava um dos poemas ao acaso e ao chegar ao fim da página nada mais fazia sentido. De repente as luzes todas da casa se apagaram, o coração disparou, pensou na mulher, nos filhos, na morte de Safo. A última coisa que sentiu foram braços franzinos, mas poderosos, agarrarem-no enquanto se debatia inutilmente. Ao acordar no dia seguinte, não pôde dar “bom dia” à mulher e aos filhos. Vestiu-se para o trabalho, a gravata escura sobre a camisa de botão branca, ele, os filhos e a mulher mudos. A televisão ligada – multidões, faixas, cartazes, violência e fogo. Assistiu a tudo impassível, ele havia perdido algo. Sentia ainda a textura áspera do braço magro invadindo sua boca, apertando o coração da sua voz entre os dedos até ele murchar. E só pôde pensar: “não, não deve ser nada demais”.

 por Eduardo Alves da Costa e Fábio Andrade

Eduardo Alves da Costa comparece ao estórias roubadas com um trecho do seu poema “No caminho com Maiakóvski”, que já foi, por sinal, roubado várias vezes.O poema foi o motor de uma série de equívocos – atribuiu-se o texto ao próprio Maiakóvski e a Brecht. E também de uma série de protestos e manifestações políticas, na época das “Diretas já, tendo sido estampado em camisetas e pôsteres, até em cartões postais. Transformou-se num símbolo da resistência contra a ditadura. Eis o poema na íntegra: http://www.culturabrasil.pro.br/caminhocomaiakovski.htm

Arte de capa: “Espera eterna”, de Daaniel Araújo. Acrílica sobre porta de compensado.

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Fábio Andrade Escrito por:

Poeta e professor do curso de Letras da UFPE.

2 Comentários

  1. 4 de julho de 2013
    Responder

    Maravilhoso! Simplesmente adorável. Fico pensando, em como as coisas ficam quando “deixamos para lá”, esperamos por outro momento, porque não parece ser, como dito, “nada demais”, ou porque, muito pior, parece que pode ser deixado para depois por um motivo ou uma circunstância propositalmente exagerada para usar como desculpa. Muito bom.

  2. 8 de julho de 2013
    Responder

    Nossa Fabio, muito bom, minha respiração foi ficando suspensa no decorrer da leitura! Excelente

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