Escutas Contemporâneas

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Apresentação do músico e pesquisador David Toop. Foto: Hate Flash/ Divulgação

por Bernardo Oliveira*.

“Ouve-se o fraco rumor das cigarras. Depois os trinados de uma cotovia, depois o canto do pássaro zombeteiro. Alguém ri, uma mulher soluça convulsivamente. Um homem solta um grande grito: ‘Estamos perdidos!’ Uma voz de mulher: ‘Estamos salvos!’ Gritos explodem em toda parte: ‘Perdidos! Salvos! Perdidos! Salvos!”

(MILLER, Henry, 1945, em DELEUZE/GUATTARI, 1997, p. 113)

Um dos grandes filmes brasileiros recentes, O Som ao Redor opera a transposição das relações de poder do Brasil arcaico para o moderno, identificando a desigualdade como um liame entre dois universos aparentemente destacados. O som foi o meio escolhido pelo diretor Kleber Mendonça para ressaltar a violência, afinal “ele é uma prova de vida, um elemento mal-educado que entra pela janela e incomoda”. Uma saraivada de latidos, a cacofonia dos eletrodomésticos, o estrondo causado por uma queda d’água: a presença multifária do som, com sua capacidade de nos cercar e envolver, manteria conosco relações de constrangimento e liberação, impactando nossos sentidos como nenhum outro fenômeno.

Pensamento similar ao que desenvolve David Toop em seu último livro, sugestivamente batizado como Sinister Resonance (2011). Para ele, o som é um “intruso” cuja referência transita entre o mundo material e o mundo imaginário. Toop nota que, nos filmes de suspense e terror (particularmente no aterrorizante The Haunting, de Robert Wise), o som de uma porta rangendo ou um dedilhado de harpa antecipam um ambiente impessoal de tensão e angústia. O som é portador de uma qualidade “espectral”, que, por fugir à referência visual, causa desorientação, gerando afetos muitas vezes desconfortáveis. “As palavras voam, a carta escrita permanece. O som é ausente, enganador; fora do raio de visão, fora de alcance. Quem está ai? O som é vácuo, medo e admiração” (Toop, 2011).

Por outro lado, ao invés de domesticar o som através de consonâncias agradáveis, a música contemporânea parece acolher o medo e a instabilidade decorrentes de uma experiência sinistra. Instaurando seu próprio território sobre esse “oceano sonoro”, a música contemporânea incorpora uma infinidade de sons outrora considerados não-musicais, evidenciando que nossa relação com a escuta e, particularmente, com a música se encontra em franco processo de mutação.

Na arte sonora, “o som (em oposição às relações de altura (pitch) e ao sistema harmônico) pode ser o princípio organizador da atividade musical”, escreve Toop em um artigo de 1998. O século XX é rico em exemplos nos quais o som ao redor serve como fonte e critério para a composição: a música concreta, eletrônica, as gravações de campo, etc. Mas em interação com as ferramentas digitais, são incorporados o burburinho urbano, os gadgets eletrônicos, o som do trovão, o ruído das máquinas, sístole e diástole gravadas pelos aparelhos de ecocardiograma, sons inauditos produzidos por interações infinitas entre equipamentos. Na medida em que nos encontramos imersos no clangor total de todos os sons, o som adquire uma qualidade biológica que infecciona todos os planos de realidade.

“A música se torna o resultado de procedimentos singulares de violentação e mestiçagem do som, capazes de prover uma diversificação da percepção ordinária do tempo, do espaço e dos objetos materiais e imateriais.”

Que tipo de abertura para a criação artística é possível depreender dessa percepção? O compositor americano Richard Maxfield (1927-1969) nota que o aparato técnico da música eletrônica torna o compositor autônomo em relação ao intérprete e ao instrumentista: “E nesse processo ele ganha todo um continuum de som para sua paleta ao invés de se limitar a invenções acústicas com alguns séculos de idade e a agilidade com que ele pode ser ‘curvado’, ‘arrancado’, ‘espancado’ e ‘queimado’” (Maxfield, 1963). A música se torna o resultado de procedimentos singulares de violentação e mestiçagem do som, capazes de prover uma diversificação da percepção ordinária do tempo, do espaço e dos objetos materiais e imateriais. Por exemplo, o tempo cronológico é abalado pela evocação de uma memória atravessada pelo porvir, como ocorre nos experimentos de James Ferraro e Lee Gamble. Em relação à multiplicação de graves soturnos nos trabalhos de Demdike Stare, Gimu e Stephen O’Malley, podemos remetê-la à captação imaginária do som da terra que revolve, o simulacro das frequências sonoras das profundezas.

Por outro lado, podemos inferir dessa situação que mesmo os “instrumentos tradicionais” — acústicos e elétricos — podem ser explorados de forma completamente independente daquela prescrita pelos ditames acadêmicos. Com relação a isso, Toop lembra do jovem estudande Claude Debussy tocando “impressões pianísticas dos barulhos de rua de Paris.” E podemos citar os trabalhos do São Paulo Underground e de Tim Hecker como expressão desse processo de miscigenação e dilatação da sonoridade, que resulta em uma concepção harmônica fraturada pelos ruídos digitais.

Um acercamento possível do termo “novo” na expressão “novas frequências” reside, assim, na ampliação da percepção em relação à estranha presença do som. Trata-se de uma intuição renovada, para além de certas concepções do que é ou deixa de ser “a música”. Também não se reduz às novidades musicais ou ao equívoco termo “música experimental”. Não há garantias de que categorias como “belo” e “sublime” possam dar conta desse contexto, pois a consciência imersiva implica a exposição ao perigo — “definindo a noise art imersiva como uma experiência limite de saturação” (Nechvatal, 2011). Ao assimilar parcialmente uma ecologia sonora saturada e em crescimento exponencial, as escutas contemporâneas vêm sedimentando as plataformas para uma abertura perigosa e promissora.

* Publicado originalmente no site do festival Novas Frequências.

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Bernardo Oliveira Escrito por:

Professor de filosofia da Faculdade de Educação/UFRJ, crítico musical e pesquisador.

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