entrevista: Rua

Rua | Foto: Flora Pimentel

A banda Rua é formada pela voz e poética particular de Caio Lima, bateria e ruído de Hugo Medeiros, cavaco, bandolim, melodias e dissonâncias de Nelson Brederore, e pela distância física de Yuri Pimentel e Bruno Giorgi, respectivamente, baixo e guitarra da banda. A ausência, antes uma dificuldade, faz do encontro dos músicos uma “celebração de agonia e êxtase”. Como confirma Caio Lima nesse pedaço de conversa.

por Carlos Gomes.

 

A última apresentação da Rua, que ocorreu na Livraria Cultura, teve um aspecto de transição entre o show do disco anterior, do absurdo (2011), e do próximo, Limbo (2013)?

Quando me coloco na posição de responder pelo grupo sinto, imediatamente, que me encontro numa posição complexa, pois não é fácil, nem simples, mesmo estando parte desse grupo, mensurar tudo o que em si reúne-se para que ele exista. Fácil é afirmar que toda a vez que termino uma entrevista sinto falta do que eu queria dizer.

Quando lançamos do absurdo, eu percebia uma crítica àquilo que estampa a felicidade, com o seu sorriso de morte, em nossa promessa de vida. Era como se, esgotados naquela ideia de felicidade, reencontrados com o vazio, procurássemos a nossa voz. A criação só é possível diante do absurdo. Então, partimos para o vazio; deixamos os acordes em bloco de lado, tentamos chegar novamente a uma polifonia que possuía como norte a nossa memória e, sobretudo, os nossos ouvidos e afetos. Lembro que meu pai ao escutar a Master disse: “Porra, cadê a harmonia? Tá muito vazio! Esse cavaquinho parece que está desafinado.”.

Até hoje, essa história de estar minimalista surge apenas da necessidade de encontrar a música em nós; um impulso vital. A tentativa, mesmo que até então intuitiva, de corromper a forma que, através de meios distintos, nos impõe como possibilidade de fazer música e, o que acho pior, de criar a sua escuta, o seu ouvido. Acho que fazer música pode ser isso: a procura por aquilo que move, comove. Dramaticamente, fomos ao fundo do poço, até o óbvio da repetição e lá encontramos uma força que corrompeu a nossa própria ingenuidade, um gênio sagaz que, aparentemente, “complexificou” o ritmo e o melos. Essa foi a nossa harmonia.

Rua | Foto: Flora Pimentel

No show na Cultura, ao tocarmos cinco músicas do Limbo, mostramos às mais de cem pessoas que compareceram à livraria que estamos atravessando o do absurdo e chegando a outra coisa. O sintetizador está sendo mais utilizado; a guitarra aparece como mais uma voz; a ideia de tempo relativo inscreveu-se de vez na polimetria, e às vezes, sem percebemos, realiza-se sem reflexão. E já que falamos de um disco novo que existe mais em sonho, aqui falo também de desejo.

Terminamos a apresentação com confiança, mesmo com Yuri e Bruno morando no RJ, o que dificulta o nosso encontro físico, como normalmente acontece com as bandas tradicionais, estamos nos sentindo mais confiantes. Confiantes como se fizéssemos uma música que surge apenas desse encontro, e por isso celebramos as apresentações: é um momento fuderoso, de agonia e êxtase. Porém, se eu fosse falar sobre o que é o Limbo, diria que ele se faz sobre desilusões. Limbo é sobre a esperança ou sobre a força do que desespera. E ainda uma reflexão sobre a idolatria. Vejo como um progresso do disco do absurdo e não como revolução. Mas aqui há uma ideia de força, de violentar ilusões, que de certa forma estava no do absurdo, mas que parecia estar sob o colo de um destino trágico. No Limbo não há destino, há devir.

As participações especiais que vocês tiveram no show da Livraria Cultura são reflexo das parcerias para o novo disco?

Diogo é um amigo. É um cara pilhado, que gosta de música, trabalha com música, vive da música, sabe? Quando nos encontramos, conversamos sobre música. Quando Bruno não pode vir fazer o som da banda, a parte do Dub e tal, imediatamente ligamos para Diogo e o convidamos. Vem sendo assim, foi assim no show da Expoidea. Posso dizer que Diogo já faz parte da Rua. Ele fez o nosso som e tocou guitarra em duas músicas. Acho muito provável que ele esteja no Limbo.

As letras de Limbo terão o mesmo tratamento de canções como “Todalegria”, em que há, notadamente, um olhar atento à palavra na canção?

As letras do Limbo estão bastante adiantadas, mas ainda estamos em processo criativo. Sou um ruminante. Transito no limiar entre a pulsão poética avassaladora que simplesmente vaza a canção num instante e a necessidade de refletir sobre o que é a canção. Então, demoro nas letras e até hoje não consigo ignorar uma dramaturgia da canção no disco. A canção é o jogo da minha existência. Exercito-me ali, de uma forma ou de outra; um reconhecimento. Por isso, mesmo que eu acredite que o Limbo tenha uma relação mais profunda com o instrumental, sempre houve um olhar atento à palavra. Aliás, haverá uma música chamada “Palavra” no Limbo. Ainda é cedo para falar sobre os arranjos. Mesmo sabendo quais são as músicas que gravaremos, elas ainda estão sendo gestadas.

Os dois primeiros discos da Rua foram aprovados em editais de incentivo à cultura. Pensar os modelos de acesso ao incentivo, novas perspectivas para a cultura, passa também pelas conversas da banda? O que vocês pensam do modelo atual?

O Funcultura foi muito importante para a Rua. Ao lembrar que quando Yuri se mudou para o RJ seria difícil a banda continuar, conseguimos dimensionar como a aprovação da gravação do primeiro disco foi fundamental para continuarmos com a ideia da Rua. Nosso problema continua sendo a difusão. É difícil circular e acaba que a repercussão do seu trabalho fica restringida ao seu poder de fazer o produto circular. As redes sociais nos ajudaram bastante nesse sentido, tivemos uma boa repercussão, mas raramente conseguimos tornar essa repercussão em realidade física.

É importante dizer que os editais de incentivo à cultura são importantes, mas que podemos e devemos pensar em alternativas para esses modelos. Conseguimos em abril de 2012 realizar dois shows por conta própria e foi uma experiência positiva no sentido de que é possível criar lugares de escuta na cidade sem ter que necessariamente depender do Estado.

A Rua tem ido para além dos discos e shows, com participações com trilhas e vídeos. Falem um pouco sobre esses trabalhos, e se há novos projetos à frente.

A minha relação com grupos de dança da cidade do Recife me instigou a investigar a relação entre o corpo e o som, a imaginação e o movimento. Em certo momento percebi o bailarino com o corpo silenciado e o músico com metafísica demais. Então, já fizemos algumas trilhas para espetáculos de dança, videodanças, tentando realizar uma reaproximação dessas linguagens a fim de compreender algo como uma retórica do sentir ou uma cartografia sonoro-afetiva. Como determinado som reverbera no movimento do corpo? E ainda todo o mês realizamos junto ao Coletivo Lugar Comum numa jam session de música e dança.

Publicado originalmente no e-zine pq?, em dezembro de 2012.
Fotos de Flora Pimentel.

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Carlos Gomes Escrito por:

Escritor, pesquisador e crítico. É editor dos projetos do Outros Críticos, mestre em Comunicação pela UFPE e autor do livro de contos "corto por um atalho em terras estrangeiras" (2012), de poesia "êxodo," (CEPE, 2016) e "canto primeiro (ou desterrados)" (2016), e do livro "Canções iluminadas de sol" (2018), um estudo comparado das canções do tropicalismo e manguebeat.

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