entrevista: Jam da Silva

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Foto: Tati Azevedo

por Carlos Gomes.

Jam da Silva não foi encontrado. A personagem que arquiteta canções que não se vinculam estritamente a características de um estilo, categoria, gênero ou mesmo de uma cena musical, se desfaz com naturalidade das expressões preconcebidas que perseguem alguns músicos. Este grande guarda-chuva da World Music, preguiçoso e acrítico, nunca pôde o acobertar. Jam não tem tido tempo para se resguardar sobre qualquer cobertura que seja. É nômade, mas não estrangeiro. Porque o estrangeiro finca raízes na terra alheia. O nômade não, está sempre em migração, sem fincar morada, mas arrancando as raízes dos lugares e levando consigo para outras paragens. Apesar de tantas raízes-lugares, o músico, em seus dois álbuns lançados, Dia Santo (2008) e o novíssimo Nord, consegue apropriar para si uma identidade musical reconhecível para o público e demais músicos, que costumeiramente o convidam para colaborar em suas produções. Nesse diálogo, nunca será o “percussionista Jam da Silva” a ser convidado, como lembram músicos como Marcelo Lobato e Juliano Holanda: “deixa o Jam fazer o que quiser na música”, mas propriamente um artista sensível aos ambientes por onde circula e ao contato com outras pessoas e suas formas distintas de enxergar a vida e a arte. Jam tem a sua, mesmo que a sua figura esteja sempre em migração, o som permanecerá.

De que forma a abreviação “Nord”, que intitula o teu novo disco, funciona como uma espécie de síntese desse teu novo trabalho? Quando um artista chega, ele não chega sozinho. Tanto musicalmente quanto conceitualmente. Eu tinha a ideia desde o Dia Santo (2008), o disco anterior, de ter um deslocamento físico, de estar em vários lugares – como na Islândia –, e conversando com Filipe Barros, da Bande Dessinée, sobre o disco, ele veio e sugeriu esse nome. E eu: “É isso mesmo!”. Eu estava falando em Nordeste nórdico… Daí ele disse: “Nord”. Até pra sintetizar como uma tagline é bom. A Islândia sempre me chamou enquanto natureza, como imaginário mesmo, assim como Caio Jobim escreve no release do disco. Eu sempre tive curiosidade através da música da Islândia, e, obviamente, nos lugares que têm lá. Eu via uma aproximação com coisas que eu convivia aqui no sertão, de espaço, vastidão, dimensão. É muito parecido, apesar de ser completamente o oposto.

A tua intenção era fazer exatamente o quê na Islândia? Inspirar não… É caído falar isso. Eu fui tentar entender o porquê das pessoas fazerem aquele som ali. Um som mais clássico, jazz, mais opaco também. Parece uma água. Aqueles sopros que não são os abertos metalizados daqui. Mais sinfônico os de lá. Eu acho que misturar pessoas de vários universos musicais traz um frescor pra música. O que me chamou para lá foi… um discreto mistério que tem lá. Fui pra me achar também, encontrar um elo através de um não-conforto. Você num lugar totalmente diferente sem nenhum dos instrumentos que você comumente usa. Ou de pessoas, estúdios. Eu fui de peito aberto para ver o que sairia de mim estando em outro lugar.

“Inventaram um nordeste que hoje já é outro. Um nordeste arcaico que não existe.”

Essa percepção de que o nordeste tem um ponto de contato se deu em que momento? Somente na volta? Eu já fui pensando em tudo, com o conceito pronto. Pensando o que seria o nordeste musicalmente. Porque lá não tem a coisa do ritmo. Não é forte, mas aqui tem. Eu quis tirar cada lugar de seu ambiente de um jeito sutil. Sem estereótipos. Inventaram um nordeste que hoje já é outro. Um nordeste arcaico que não existe. Você vai ao sertão é tem LAN house, todo mundo trabalhando com turismo. Crianças e adolescentes com as motocas. É um outro ambiente. Esse disco é uma percepção do que eu tive dos dois lugares. Da natureza, do tempo desses lugares. Lá é muito espaçoso, longo. Você marca dez coisas e consegue fazer tudo.

E pra gravar, na relação com os outros músicos? Não adianta chegar: “Vamos gravar!”. Não dá, tem que marcar, talvez um mês antes. Eu aproveitei que tinha um show em Portugal e marquei lá também. Eu vim trabalhando dois anos pra marcar esse show. E para minha surpresa, foi lotado. Muito por conta da internet. Eu cheguei num dia na Islândia e no outro já tinha o show. E foi louco. Parece que você chegou na lua. O aeroporto é a quarenta minutos da cidade. E aí tudo escuro, um breu. Depois você chega à cidade e não tem ninguém na rua. Então, foi um choque estar lotado. As pessoas simpáticas, receptivas. Lá eu conheci o Samúel Jón Samúelsson, arranjador, que já tocou numa turnê com o Sigur Rós, que é uma banda muito conhecida de lá. Então foi isso, eu queria pegar esse ambiente. De ter uma nova perspectiva. Por exemplo, se eu tocar um ijexá, o músico daqui, eu já imagino o que ele vai me sugerir. Mas eu quis levar para um outro ambiente e juntar de uma forma coesa. Eu fui atrás de um som, de criar uma identidade musical junto com essas pessoas.

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Jam da Silva já integrou diversas bandas, entre elas, a Orchestra Santa Massa, de Pernambuco, e o F.U.R.T.O., do Rio de Janeiro. Com sua assinatura solo, lançou dois discos. Dia Santo (2008) foi produzido em parceria com Chico Neves e gravado no Rio de Janeiro e em Recife. Nord, o mais recente, foi produzido por Jam e traz participações dos músicos Juliano Holanda, Areia, Gabriel Melo, Samuel Jón Samuelsson, Chico Neves, Zé Nóbrega, Lionel Delannoy, Lisa Papineau, Luísa Maita, Guilherme Kastrup, e Lucas Santtana e Pedro Mibielli. O disco está disponível para audição em diversas plataformas on-line, como o YouTube e iTunes.

Essa busca pela ambiência desses outros lugares, além do contato com outros músicos, sintetiza também a tua trajetória como músico? O de não se sentir identificado com nenhum lugar, como se você fosse sempre um estrangeiro? De estar sempre em migração… Eu não me sinto estrangeiro. Eu não me incomodo em lugar nenhum. Mas hoje estou emplacando em minha vida isso, o que você está falando, que é o nomadismo. Tem sido muito bom colher o tempo nos lugares. E eu, realmente, não me incomodo com os lugares. Lugar-nenhum já é algum lugar. Está sendo engraçado. As pessoas perguntam: “Você mora onde?”. Eu não tenho endereço (risos). Tenho lugares temporários. Hoje eu recebi um convite de uma cantora baiana: “A gente te manda um convite e te traz do Rio de Janeiro ou de onde você estiver”. Engraçado, que ela já sabe disso (risos). As pessoas, em geral, não sabem onde eu estou.

No começo, o ir e vir era uma superação. Quando eu comecei a viajar sozinho, ficava meio triste, porque eu gosto de viajar com muita gente em volta. Mas depois me acostumei. Já fui umas vinte e oito vezes só pra França. Fora outros lugares. Gravei na África três discos. Fiquei dois meses e meio na Angola. É natural isso. Quando não tem esse movimento eu fico meio pra baixo. Eu gosto desse movimento de corpo. Para mim, a música é movimento de corpo. E cada vez mais o mesmo lugar é um novo lugar. Viajando eu aprendi a ter paciência, porque nunca tem um lugar de conforto. Você pode chegar à Islândia e tudo estar fechado, como estava. Então, você tem que criar um estado de espírito pra ter uma paciência a mais.

Como esse movimento de transição influi no teu processo de composição? Eu não componho racionalmente. “Ah eu vou fazer uma música que vai falar de amor, vai falar disso…”. Eu penso em movimento, se é lento, acelerado ou médio. A música que abre Nord, “A vida na dança”, eu fiz em homenagem à dança mesmo. Eu gosto muito. Fiz um ano de sapateado e dança africana também. Eu vou para lugares que tenham bons DJs pra ouvir os BPMs. E gravo isso. Pesquiso também na internet. Para mim é muito importante o bit estar bem alicerçado, para depois surgirem as outras coisas.

Em Nord o ritmo é um elemento central? Tanto nesse disco quanto no anterior. Mas eu não preestabeleço nada. Por exemplo, “Bem Tranquilo”, a faixa oito, que eu fiz com Juliano Holanda e Gabriel Melo, surgiu no estúdio. E tem a ver com o improviso. No show eu ensaio 60, 70% e o resto eu improviso, porque acho que isso traz um frescor muito grande. Eu sou acostumado a gravar em estúdio desde muito pequeno, em estúdios bons. É um lugar onde eu me sinto confortável com essa liberdade. É o que o artista precisa para criar.

Pensando na sonoridade de teus trabalhos, tanto Dia Santo quanto Nord, lhe incomoda, principalmente na imprensa, o estereótipo do “disco do percussionista Jam…”, como uma ideia preconcebida do que seria a sonoridade e a presença da percussão na tua música? Esses rótulos já não me pegam mais. Quando as pessoas me chamam pra trabalhar, chamam a mim, não a um cara que toca só aquilo. Eu tenho uma visão de produtor também, posso agregar de diversas formas. Fazendo melodia, letra. Quem me falou isso uma vez foi o Marcelo Lobato d’O Rappa: “Quando eu chamo o Jam, deixo ele fazer o que quiser. Deixa ele lá. Se quiser tocar piano rhodes toca, deixa ele lá”. Isso tem acontecido bastante. Juliano Holanda me chamou pra gravar “Ouriço” e disse: “Olha, faz o que tu quiser”.

Mas esse estereótipo já caiu. Eu não quero me sobressair. Numa música eu posso tocar menos, noutras mais. Vou fazer o arranjo, que eu gosto muito. Nord tem muito disso. Eu chamei arranjadores para cordas, sopros. O disco tem Mark Lambert, nova-iorquino, que já produziu Astrud Gilberto. Tem o Samúel Jón Samúelsson, islandês, e Pedro Mibielli, que fez arranjos de violino. Eu acho que mesmo sendo espontâneo, nós fazemos pensando num arranjo, com introduções maiores e finais também, saindo um pouco do padrão da canção. É um conceito de pós-canção. Como seria? Um minuto de instrumental e quando você vê vem a letra. E faço também muito sem a letra, só a base, pra depois criar a letra, melodia, porque assim você respeita menos a música. Quando você já tem a letra acaba indo atrás da harmonia. Ficando enquadrado naquilo.

Sobre a quebra de estereótipos, mas no lugar da música, como uma questão racial, em que situação foi composta “Preto Mulato Branco”? E em que medida você trata da questão da identidade com ela, porque tem tudo a ver com o teu disco, não? Tem, tem. São encontros. Eu fiz com Fábio Trummer. A gente fez em Lisboa. Foi sobre uma noite em que eu perdi o sorriso. Uma vez no Rio de Janeiro… Eu andando… Enfim… Fala sobre o racismo. De uma forma leve, sutil. E até divertida. Uma brincadeira entre os símbolos sociais. “Não me meta no seu medo”, ela diz. Foi uma coisa que aconteceu, dentre milhares de outras que acontecem diariamente. Quando não acontece num dia é uma questão de glória, de luxo, de não ter uma situação chata. Eu fiquei a fim de falar sobre isso, mas não de uma maneira chata. Que as pessoas entendessem na melodia, aos poucos, mas sem mágoa, sem nada, em paz. Tem aquela música de Chico Science: “Eu só quero andar nas ruas do Brasil/ Andar no mundo livre…”. É muito importante andar livre, mas não sei se te respondi. Tem a ver com o final da anterior, musicalmente. Como “Vagueia” termina e a entrada dessa. Depois chamei Lucas Santtana pra cantar. Ele é um amigo de muito tempo… Mas quem é branco no Brasil? O pessoal pensa que é, mas não é. Ser tratado diferente por conta de sua cor é muito chato. Por conta da música é quebrado isso. Eu fico meio sem cor. Algumas pessoas me veem transparente, mas eu sou negro. Então, eu sei exatamente da minha identidade. Senão, vem alguém e vai me lembrar de um jeito esquisito.

Como o mercado da música tem recebido os teus discos solos, ou mesmo essa tua trajetória artística, de não se fixar em lugares ou categoria? O rótulo World Music é comumente associado a você? Dia Santo nunca entrou em World Music, mas como Eletrônico ou música contemporânea brasileira. E os shows que eu fiz fora, todos em lugares do mercado local, não de brasileiros que vão tocar lá. Fiz um show em Londres solo para duas mil pessoas, num mercado que não é Brasil com Z, sabe? Eu não pretendo entrar em nenhuma prateleira. Eu gosto de artistas como Beck e Caetano Veloso, que mudam a cada disco. É um approach diferente. Eu posso fazer um disco de Bossa Nova, mas como uma desconstrução dela, ou um só de piano, e ser meu. Eu soltei Nord na internet e teve mais de mil views em 24 horas. Muita gente me escrevendo…

Qual a diferença de recepção do público que você percebeu entre Dia Santo e o novo disco? Aumentou consideravelmente. Porque as pessoas já conheciam do primeiro. Está expandindo cada vez mais.

No Nord você teve uma banda base, com Juliano, Areia e Gabriel. Você já está pensando em como transpor o disco para o show, se manterá essa base? Disco é uma coisa e show é outra, poder ser uma coisa totalmente diferente. Uma coisa eletrônica. Estou pensando nisso. Mas com essas migrações, deslocamentos, eu fico pensando nisso, mas ainda não consegui decidir. Eu ganhei um edital do Funcultura para fazer uma turnê pela América Latina, mas vou estender para outros lugares, multiplicar isso. Mas ainda não montei a banda. Tem muito músico bom, mas preciso de músicos multi-instrumentistas. Eu queria criar uma unidade com um grupo de músicos. Mas também tenho vontade de fazer só com mais uma pessoa, mais eletrônico. O mercado está bem nesse clima de síntese. Eu acho bom por um lado, mas por outro a música perde. Eu gosto de ter um monte de gente tocando. Vamos ver.

Publicado originalmente em outubro de 2014, na 5ª edição da revista Outros Críticos.

SERVIÇO

Jam da Silva apresenta o álbum “Nord” no Festival Rec-Beat, na segunda-feira de Carnaval (dia 16), às 22h.

Foto de capa do site: Nina Gaul.

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Carlos Gomes Escrito por:

Escritor, pesquisador e crítico. É editor dos projetos do Outros Críticos, mestre em Comunicação pela UFPE e autor do livro de contos "corto por um atalho em terras estrangeiras" (2012), de poesia "êxodo," (CEPE, 2016) e "canto primeiro (ou desterrados)" (2016), e do livro "Canções iluminadas de sol" (2018), um estudo comparado das canções do tropicalismo e manguebeat.

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