
por Bruno Vitorino.
De lados diametralmente opostos no painel da Cultura, estão a tradição e a vanguarda. A primeira foca na repetição de um arcabouço simbólico sedimentado nas práticas sociais, encontrando no passado o sentido ratificador e estruturador de toda a prática cultural do coletivo em detrimento da liberdade do indivíduo, reduzindo-o ao ente que exercita e preserva o legado ancestral que lhe fora transmitido. A tradição busca a continuidade e não a ruptura. Já a segunda propõe a quebra dos modelos herdados do passado, permitindo ao artista, na manipulação da linguagem de seu meio expressivo, encontrar um caminho que priorize suas demandas internas e comunique com o mundo material sua essência mais íntima, sem a rigidez de um formato preconcebido. A vanguarda foca no agora, deseja as vicissitudes do movimento e preza pelo Eu que transforma o todo em seu fazer artístico. Porém, na zona de intersecção desses extremos que paradoxalmente se tocam, eventualmente surgem projetos que, por sua ousadia estética, domínio dos recursos técnicos e capacidade criadora irrefreável, desafiam as conveniências da taxonomia, apontando para o inesperado. É justamente nesse delta que se encontra o dueto pernambucano Ell Gênio Duo.
Formado pelo clarinetista Luciano Emerson e pelo jovem violonista Caio Fernando, o Ell Gênio Duo se lança a uma abordagem mais livre, aberta e arriscada do Choro ao inserir nele a naturalidade da improvisação jazzística e a minúcia da estruturação composicional erudita, derrubando as contenções estilísticas do gênero e subvertendo certas verdades estéticas. Vanguardistas na abordagem e tradicionalistas por formação, os instrumentistas fazem de sua música uma espécie de plataforma filosófica para o encadeamento de teses, antíteses e sínteses culturais que descambam no múltiplo. Uma multiplicidade, diga-se, que não se relaciona com o fortuito e o efêmero tão caros ao homo frivolus, e sim com a urgente e constante busca por novos rumos expressivos sobre antigos alicerces sonoros. O epíteto “gênio”, estampado no nome do projeto, nada tem de narcisista ou egocêntrico. Ao contrário, faz uma referência irônica à dessubstanciação e à banalização do termo que é distribuído aos montes a falsos prodígios no circuito da música atual, além de trazer incutida em si uma autoanálise crítica sobre a finalidade da técnica na execução musical, uma vez que precisão dissociada de carga emotiva se torna mecânica, antimusical e reduz a música a espetáculo circense.
Produzido de forma independente, o dueto estreia com o excelente disco Reflexos. Gravado ao vivo e sem edições no Estúdio Muzak no início do ano, o álbum traz impressionantes dez faixas autorais onde os instrumentistas demonstram comunicação telepática e vínculo emocional sólido. Os temas são bastante ricos do ponto de vista harmônico, exuberantes no que diz respeito aos contornos melódicos, explorando os limites entre a estrutura preconcebida da composição e a construção espontânea do discurso improvisativo. Destaque para “Bemol é uma Riqueza”, de Caio, com seu estilo “varandão”, mas cheia de reviravoltas temáticas e uma sagaz quebra da métrica rítmica com um inesperado 3/4 e “Reflexos”, de Luciano, que, com sua ambiência ad libitum, investiga os ecos de descobrir um Outro que é, na verdade, parte de si. Nesse caso, conhecer uma irmã. Sem dúvidas, um dos maiores êxitos instrumentais já registrados em Pernambuco, e prova definitiva de que a produção recifense vai muito mais além do estereótipo alternativo que tanto faz questão de cultivar.
Publicado originalmente na 3ª edição da revista Outros Críticos.
Que seria da Tradição sem a Vanguarda, e desta sem a tradição? Há algo mais nessa polaridade fundada na dualidade que a mera aparência, ou a eterna arenga dos “antigos e modernos” que varre os séculos. A eterna peleja entre a “parte” e o “Todo” de que são feitas todas as coisas quando observadas sem o véu da aparência
O Ell Gênio Duo é realmente um primor. Parabéns!