Diálogo II com Zeca Viana: “seja marginal, seja herói” ainda faz sentido?

Diálogos é uma série de conversas realizadas com personalidades pensantes. O segundo texto é um papo que eu tive com o músico Zeca Viana. A ideia central do projeto é subverter os posicionamentos estabelecidos nas entrevistas usuais, em que o entrevistador faz as perguntas, mas não responde, e em que o entrevistado responde às perguntas roteirizadas pelo entrevistador, mas não pergunta. Dessa maneira, uma questão é lançada no início do debate para direcionar os argumentos, mas depois, os rumos que se seguem variam a partir das deixas dos debatedores e do imediatismo e saltos da oralidade. O processo é todo gravado, depois transcrito e editado, procurando não tirar a naturalidade da conversação – essa fluidez oral no texto, talvez, seja o maior cuidado editorial com o formato proposto. Dessa vez, o diálogo foi motivado pela sentença de Hélio Oiticica: “seja marginal, seja herói”. Aproveitem o bate-papo que segue abaixo, entre mim e Zeca:

Ricardo Maia Jr.

A pegunta que eu queria fazer para começar a instigar esse diálogo é: a sentença “seja marginal, seja herói” faz sentido ainda?

Zeca Viana

Eu acho que o que está mais evidente, assim, pelo menos, no que eu vejo em relação à cultura de uma forma geral, principalmente em Recife, produção de arte e tal, é que, na verdade, existem vários heróis anônimos. Essa que é a questão! A mídia local não se preocupou e não tem tido a preocupação de envolver um raciocínio de pesquisa para ir atrás do herói que está fazendo arte, agora, ou daquele que está produzindo uma forma de expressão que não está dentro de um circuito de mercado – o que, na verdade, eu acho que, hoje em 2013, nem existe isso mais de forma majoritária. Então, eu acho que o herói, hoje, é um herói anônimo. E não deixa de ser menos herói por causa disso, ao contrário, o cara é mais herói; porque tem que enfrentar um monte de obstáculos; inclusive, de não ser reconhecido como tal. Mesmo o cara tendo todo o potencial para ser indicado como herói de certa cena, ou um herói da sua turma ou um herói do seu estilo musical ou só um herói por estar gravando música em casa e poder fazer com que isso seja mostrado para outras pessoas; isso, pra mim, já é o cara ser herói!

Ricardo Maia Jr.

É, eu vejo, assim, no sentido de Agamben que diz que o contemporâneo está sempre nas sombras, sempre na escuridão. Às vezes, a gente acaba tendo até uma percepção contrária do que seja o contemporâneo. A gente acha que o contemporâneo é aquele cara ligado, é o cara que tá na moda; o cara que percebe o que está sendo iluminado, em certo sentido, o que está em evidência. Eu acho que o contemporâneo se aproxima muito, nesse sentido, do outsider. O contemporâneo acaba sendo o cara que, no final das contas, tem uma leitura muito mais genuína do seu tempo. Ele tem essa dupla posição de estar dentro e deslocado do seu tempo. É uma coisa meio paradoxal! Mas eu acho que bate nessa sentença do Hélio Oiticica do “seja marginal, seja herói” – que tem um poder político grande, um poder de subversão muito grande. Tem tudo a ver com essa questão do contemporâneo ser o outsider! Do contemporâneo ser o cara que fala para sua época, mas muita gente não entende ou não quer entender, e acha que o cara é um sujeito atemporal, anacrônico. Mas ele é o cara que dentro dessa possibilidade de perceber a escuridão do seu tempo, de perceber o que está escondido, de ser um garimpeiro, ele acaba sendo muito mais atual. É uma coisa difícil de entender, talvez. Como é que o cara é contemporâneo e como o cara, ao mesmo tempo, é outsider. Como é que o cara é herói e como o cara é marginal. É um paradoxo que bota em jogo, no final das contas, essa coisa de a gente garimpar mesmo, de a gente tentar ver quem é que está falando pro seu tempo – aquele que não tem uma coerência, muitas vezes, com os artistas da moda ou com o discurso da moda ou com o discurso que acaba sendo o hegemônico.

Então, eu acho que essa frase “seja marginal, seja herói” ainda é muito coerente, eu acho que sempre foi muito coerente! Mas, como viver nesse paradoxo? Sendo marginal, sendo herói; sendo contemporâneo, sendo outsider!

Zeca Viana

O que eu acho interessante nessa questão do herói é porque não deixa de ser uma construção. Uma construção de quem está por perto tendo um tipo de relação de troca com determinados agentes culturais, vamos dizer assim. Trazendo essa conversa para o Recife, numa forma que eu acho que encaixa bem com o que a gente está vivendo, agora, dessa exposição da nova cena – que as bandas e os artistas da periferia estão conseguindo alcançar, o que, cinco anos atrás, não era nem imaginável que toda essa galera ia estar no O Globo, por exemplo. Um cara que eu queria muito citar, e que eu acho que representa muito essa coisa do anônimo e herói, é o Graxa. Eu convivi com o Graxa, em época de colégio ainda, e ele sempre foi um cara que estava inteirado de tudo que estava acontecendo; sempre foi um cara que eu via pesquisar música e tal, e sempre foi verdadeiro com o que fez. E as gravações que ele me mandou para participar do Recife Lo-fi, realmente, me espantaram. Porque mostrou um potencial artístico, assim, que eu já esperava, mas, eu não esperava que tivesse tão maduro, tá ligado?! E eu acho que ele é um exemplo perfeito, assim, do que eu identifico como um herói marginal.

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05. Graxa -Tudo em volta em mim vira um vão by outroscriticos02

Porque é muito fácil, cara, você ter uma banda morando… E eu não estou falando, aqui, de forma pejorativa. Estou falando de forma estrutural mesmo. É mais fácil você ter uma banda morando na Torre, com um apartamento massa, seu pai dando um carro para você andar, dando mesada, dinheiro para pagar estúdio, e amigos também que têm uma classe social de classe média alta. Não estou dizendo que isso gere bandas ruins, ao contrário, geram bandas muito boas. Isso é muito bom! Mas, você pensar que… Eu cresci na Estância, tá ligado?! Eu cresci na Estância, Barro, Areias, Jardim São Paulo, eu andava de bicicleta por ali quando era criança. Tipo, eu sei como é difícil, o cara sair da Estância para ensaiar num estúdio lá na Vila Cardeal e Silva com uma guitarra nas costas, pegando sol num ônibus, podendo ser assaltado. Já roubaram um instrumento meu, na rua. E você vê que essa produção é forte e continua sendo gerada. Você pega toda essa galera que veio da Estância, desde os anos 90, fazendo e continuando a fazer, e isso começa a amadurecer e tal. Tipo, pra mim, Graxa é um grande exemplo de um artista herói, velho! Que nêgo que é do Parnamirim, de bairros nobres da cidade deveriam conhecer. E não só a música do Graxa, mas assim como a gente encontra em arte conceitual, hoje em dia, de conhecer o que está ao redor do cara, para entender por que o cara está fazendo aquela música. O que é que torna aquilo um conceito forte, tá ligado?! Porque eu acho que a música desse bicho é também parte primordial da vida dele.

Ricardo Maia Jr.

Eu penso que quem vem da periferia acaba se jogando mais nas coisas! Só que tem um contexto diferente, aqui, principalmente depois do Mangue. A galera do Mangue se jogou, muito cedo, e mudou de cidade. Aqui, a turma continua a trabalhar, continua a fazer eventos – que muita gente até considera roubada, com equipamentos que, às vezes, não são nem legais para o cara mostrar o som dele. Mas a turma resolveu ficar aqui. E isso, eu acho uma mudança brutal, que traz muita coisa boa porque acaba a cena, de certa maneira, se concentrando aqui. A galera quer trabalhar e quer criar um circuito aqui! Só que isso também traz muita impotência, porque o Nordeste ainda precisa muito de uma matéria de um jornal de fora ou de o cara morar ou de dar uma aventurada lá fora. Só que não é uma coisa tão fácil, assim, porque, sei lá, a turma do Mangue, de certa maneira, conseguiu aqueles selos de gravadoras, como o Chaos e o Banguela, que financiaram o custeio de gravação, o custeio de passar uma temporada em São Paulo.

Hoje em dia, com essa coisa da baixa produção e do Lo-fi traz a possibilidade de você gravar sem precisar ir para fora, só que, no final das contas, a gente acaba não tendo um circuito, não tendo como divulgar isso, não tendo como distribuir isso de uma maneira devida; e como você até falou, não tem também nem a preocupação da mídia em botar isso em evidência – de muitas vezes forjar uma cena, de tentar entender, de lançar um termo que, às vezes, até a galera pode pensar que não é isso, mas, o cara está, pelo menos, provocando uma discussão, tá provocando um debate aí. Só que eu penso também que a gente bota muita carga na periferia. É uma coisa de fetiche, talvez. Principalmente da turma de classe média de jornal que acaba vendo a periferia como um lugar ideal de produção e que pelas dificuldades acaba gerando mais interesse. Será que tudo que presta só pode vir da periferia? Ou, realmente, a precariedade instiga mais a criatividade?

Zeca Viana

Eu acho que essa diferença de classes econômicas gera nichos. Então, o nicho na classe média de bandas que produzem vai ter uma força muito mais operante de mídia, por quê?! Porque o pai de alguém conhece ou o cara já estudou com a irmã do jornalista tal. O cara conhece não sei quem da TV. E na periferia, como não existe isso e as dificuldades são maiores, o núcleo que se forma para enfrentar os problemas que aparecem para você ter uma banda, e enfrenta as dificuldades de uma forma muito mais visceral. Então, eu acho que isso cria uma cena onde os agentes vivem isso de uma forma, muitas vezes, até sangrenta, eu diria. O que eu acho interessante é que pessoas interajam umas com as outras e se interessem pelos sons dos outros, e aí está o grande lance, em as pessoas serem abertas. O que acho foda, na verdade, independente do cara ser classe média, independente do cara morar no subúrbio ou não, é que os agentes de cada um desses lugares interajam entre si. E isso acontece muito em Recife, e é por isso que a gente tem uma cena rica, nesse sentido. Mas é preciso fazer com que isso tenha uma mão dupla de influências também. Eu acho, velho, que a questão principal está nas pessoas, assim, está em como as pessoas encaram isso daí. Agora, eu queria repetir isso, o importante mesmo é existir em Recife uma crítica jornalística que pesquise, velho! Que seja garimpeira mesmo!

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O Recife Lo-fi, eu fiz no sentido de escutar muitas gravações em baixa fidelidade mesmo e pegar essas gravações e dizer: velho, elas têm potencial artístico fuderoso, e não é porque elas não foram gravadas num estúdio foda que não devem ser mostradas. Essa foi a principal intenção! Independente do cara ser de subúrbio ou não. Se você for pegar no Recife Lo-fi volume II e III tem bandas que uns caras já vieram e me falaram: ah, mas aí tem banda de gente rica! Velho, não importa! A gente tá preocupado, na verdade, com as faixas. Eu acho que o principal mesmo nisso tudo é ter um trabalho de mídia, em Recife. As pessoas que têm acesso às mídias de grande circulação como jornal, TV e rádio deveriam estar falando sobre e tocando esses artistas. Quando é que vão começar a tocar esses artistas, velho?! Já saiu na capa do Globo, quer que saia aonde, no Jornal Nacional?! Estão esperando isso, então!

Fotos: 1. Imagem de capa: Reprodução Hélio Oiticica. 2. Graxa/ Divulgação 3. Músicos da coletânea Recife Lo-fi por Bruna Rafaella

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Ricardo Maia Jr. Escrito por:

Pesquisador, professor e músico da Ex-Exus.

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