Desafinado mundo

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Arte: Jeims Duarte

por Fernanda Maia.

A algazarra das crianças, o ruído quase que contínuo dos motores, o condicionador de ar que ruge do lado de fora, o som potente das hélices que tornam o ambiente sonoro ainda mais fatigante e linear. “O aumento da intensidade da potência do som é a característica mais marcante da paisagem sonora industrializada.”, assim definiu Schafer a contribuição mais audível da Revolução Industrial. Talvez eu estivesse a descrever uma fábrica têxtil do século XVIII, não fosse pelo volume descontrolado das vozes agudas que, junto à minha, brigam por atenção na paisagem sonora nada saudável da escola em que leciono todos os dias. Mas como denominar de paisagem um emitente caótico de ruídos indesejados?

No final da década de 60, na Simon Fraser University (Canadá), o compositor e também professor R. Murray Schafer se reuniu com demais pesquisadores para formar o World Soundscape Project (WSP) – sendo a expressão “soundscape” um neologismo derivado do termo em inglês “landscape”, que significa “paisagem”, originando assim, em nossa língua, o termo “paisagem sonora”. Como resultado das pesquisas e análises realizadas, Schafer lança em 1977 o livro The tuning of the world (A afinação do mundo, em sua segunda edição, publicada em 2011), que se tornará referência mundial no estudo de campos acústicos. Para tanto, Schafer fez um diagnóstico sobre o ambiente sonoro de algumas comunidades (principalmente da Europa) de forma diacrônica, através de textos literários ou in loco, criando fundamentos para o “projeto acústico”, um sistema interdisciplinar capaz de apresentar meios de melhoria do ambiente acústico, reduzindo a poluição sonora.

“A paisagem sonora de qualquer local pode ser construída de sons agradáveis ou desconfortáveis; capazes ou não de deter poder.”

Para formatar a sua análise, Schafer criou diversas terminologias e conceitos, mas citarei aqui apenas os principais temas da paisagem sonora, que são: sons fundamentais, sinais e marcas sonoras. O som fundamental é aquele que de tão habituado que estamos a ele em nosso dia a dia, não são ouvidos de forma consciente, como o movimento das folhas das árvores causado pelo soprar do vento. O sinal (a figura) é aquele que em contraste ao som fundamental (pano de fundo) se destaca aos nossos ouvidos de forma consciente, como a irritante sinfonia de buzinas dos automóveis nas ruas engarrafadas de qualquer cidade. A marca sonora, por sua vez, é o som único de uma determinada comunidade, tornando-se significativa para as pessoas que vivem em um determinado local, como as tardes da minha infância foram marcadas pelo pregão do vendedor que, carregando um tabuleiro com doces, nos fazia ouvi-lo do outro lado da rua: “Óia o japonês!”. Assim, a paisagem sonora de qualquer local pode ser construída de sons agradáveis ou desconfortáveis; capazes ou não de deter poder.

Segundo Schafer, o ruído pode ser imperialista. Os sinos das igrejas, as vozes dos cânticos e o órgão são exemplos clássicos do poder cristão; como na era da mitologia, os barulhos da natureza representavam os deuses; ou o temível estrondo do canhão na guerra. Destacar-se em um ambiente acústico é um meio de dominação. Nos eventos eleitorais, é prática comum dos candidatos – não satisfeitos em poluir as ruas com panfletos, santinhos e adesivos – invadirem o ambiente acústico dos bairros com discursos e jingles que delatam o conceito da política publicitária brasileira.

“Vivemos uma batalha ‘socioacústica’, e não é apenas em nosso ambiente sonoro que ela está presente, mas também na forma como fazemos música.”

No trânsito, além do ruído causado pela automobilização nada defensiva dos motoristas, o cano de escape adulterado de motos revela uma sociedade tão violenta quanto o estrondo de uma espingarda calibre 12 que retumba no ouvido das crianças, educadas por gritos de pais ou professores que veem no “alto e bom som” a base da família/educação brasileira. Princípios que se repetem na “potência” do smartphone da moda, no alto-falante do carro que toca “a música do ano” ou no carrinho do vendedor de CDs piratas que não faz questão em ouvir o som clipar. Estamos na era da propagação quantitativa do som, e não qualitativa. Vivemos uma batalha “socioacústica”, e não é apenas em nosso ambiente sonoro que ela está presente, mas também na forma como fazemos música.

Na edição de número 44 (março), a Sound On Sound brasileira discute sobre o possível fim da “guerra de volumes” – na masterização, significa chegar ao nível de pico máximo definido, através da hipercompressão, e sacrificar o espaço (respiro) para a dinâmica musical –, iniciada na era digital, devido à normatização de volume automática que vem sendo implantada pelos mercados de broadcast e consumidor (a função “Sound Check” do iTunes, lançada pela Apple recentemente, por exemplo, mantém o volume uniforme, independente do estilo musical).

“A propagação arbitrária dos sons fortes, imperialistas, tornaram lo-fi a paisagem sonora das metrópoles, ou seja, há um congestionamento de sons […]”

Desde a Revolução Industrial, sofremos um grande impacto na forma como interagimos com o meio ambiente. A propagação arbitrária dos sons fortes, imperialistas, tornaram lo-fi a paisagem sonora das metrópoles, ou seja, há um congestionamento de sons: figura e fundo disputam espaço em um único plano. Aos poucos, os sons naturais estão sendo mascarados pelos ruídos dos motores e sons amplificados dos alto-falantes. Por isso que para o homem contemporâneo urbano, ouvir a natureza tende a ser um evento extraordinário ou nostálgico. Nas últimas décadas, o nosso relacionamento social também mudou com a implantação da tecnologia da informação em nosso cotidiano, que nos hipnotiza não só através das imagens dinâmicas, mas também por meio dos sons invasivos de aparelhos móveis que a todo o momento, e em qualquer lugar, reclamam a nossa atenção.

A indústria e a tecnologia, de fato, revolucionaram o comportamento humano, e não acredito nem defendo uma regressão contra tudo o que conquistamos de positivo até hoje, mas não podemos conviver com o que nos degrada. Se não quisermos ficar comprimidos em casa, no mundo digital, assim como a música de nosso tempo, devemos projetar a nossa paisagem sonora tal qual o jazz: imprevisível, inconstante e inspiradora.

Arte de capa: Jeims Duarte

Publicado originalmente na 3ª edição da revista Outros Críticos.

 

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Fernanda Maia Escrito por:

Professora e doutoranda em Letras, na UFPE, na linha de pesquisa de Literatura e Intersemiose. Designer do Outros Críticos, cuida dos projetos gráficos das publicações, coletâneas, material de divulgação e site.

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