Da Rua, do absurdo, das escutas, das amizades e da cena de uma banda só!

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Foto: Breno César

por Jeder Janotti Jr.

Um dos discos que mais me violenta na recente produção musical recifense é o do absurdo, da banda Rua. Violência aqui é aquilo que me obriga a sair de um ouvir narcotizado e assunta refletir sobre o que me tira o óbvio, me exige atenção dos ouvidos. Enquadramento sensório. Nem sempre isso é só do prazer, pois exige muito! Nem sempre quero estar atento!

Uma saída fácil para entender esse gosto esnobe que trai meu rock pesado é apontar para as portas de emergência e acionar a escuta: uma audição atenta que a produção, a polirritmia, a filosofia de Caio Lima (vocalista da Rua) me jogam na cara. Meu lugar de velho lobo rock’n’roll, de praias conhecidas já não é tão confortável assim. Mas a Rua (do absurdo) me faz enamorar abismos. Não, a escuta não é só sonora. Tal como muito dos produtos e das expressões culturais de nosso tempo, essa é uma escuta conexa; que une sons, silêncios, dilaceramento, dor e amizade.

Primeiramente, a música da banda englobaria várias sensações que venho deitando ao chão em um desprezo pueril: a pretensão, distinção, Letra Filosofal que se volta para si mesma sobre o que é dito: “todalegria é surda/ todalegria afunda/ um buraco invisível”. Mas o cavaquinho que não deixa de ser cavaquinho, mas muitas vezes entrecruza uma guitarra, o contrabaixo, a bateria (que quando quer emula um surdão como em “Afeiçoado”); enfim as canções que brincam de maneira difícil com o confortável 4/4, arquitetam um improvável trip hop samba, um desencontro afável entre Thom Yorke e a melancolia praieira de Dorival Caymmi.Se as cenas musicais são modos de teatralizar sonoramente as cidades, não é pouco ser como a Rua, o absurdo da cena de uma só banda, pois da outra banda somos todos, a Rua inclusa: a cena musical do Recife. Pois de tão recifense, o som da Rua é muito mais dos Rios. Permitam-se auscultá-los. É da ordem do que sobra, do que escapa. Uma sonoridade que exige dedicação mas arvora-se popular.

Escuta da ordem do afeto, a capacidade de ser afetado e afetar o outro, o que me obriga de maneira doentia a refletir é a própria voz do amigo Caio Lima (colunista deste mesmo Outros Críticos). Amizade que não pode vir de um atributo da partilha do mesmo, de um comum que compartilharíamos nos gostos musicais. Pelo contrário, como diz o filósofo Giorgio Agamben, esta escuta é da ordem do “philos”- amizade como oposição entre dois, heterogeneidade. Um torna-se outro do mesmo. E esta capacidade de transformar o que parecia doce em amargo para depois adoçá-lo novamente. Ou em dias cinzentos amargar as coisas ainda mais. Pois é desta amplificação da escuta, dos conexos, dos afetos de um ranzinza, do ranço de ojeriza de um roqueiro (auto) crítico?, que se faz o amor à música. A música que pode fundar um espaço comum, do afeto, entre um apaixonado pela Cena Beto e um incrédulo das cenas, um bitolado roqueiro e um músico desconfiado do rock, um romântico e um cético. Aos amigos não resta mais o comum de uma partilha impossível, os gostos que nos rasgam as faces. Mas a repartição de existir. Pois diante da dor, do abismo, existe a Pala: “estanca o coração de que se engana/ e não carece explicação”.

Esses atritos me fizeram perceber que para além dos tubarões dos arrecifes, existem corais, que as cenas se fazem tanto nos Festivais como na Rua Mamede Simões; e isso não são oposições, buracos de excludência, e sim o exercício árduo do pensar sobre quem nós achamos que somos. Sobre a tranquilidade de gostos que não se pensam: “a quem você confia o gozo/ a quem você ensina a viver”. E nessa inusitada trilha acabo rememorando o improvável Rolando Boldrin: “Cumpadi meu que inveieceu cantando/Diz que ruminando dá pra ser feliz”

Um momento maestro, que se agora é de amizade que estamos falando, chegamos ao final do interlúdio, a “página 6”, o final do álbum do absurdo, enquanto isso, que se rasguem os ouvidos aos sons vindos da Rua, com o cantar de Caio Lima: “e haja vida pra gastar…”.

Foto de capa: Tobias Farias

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Jeder Janotti Jr. Escrito por:

Professor do Programa de pós-graduação em Comunicação da UFPE.

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