Da Crítica Musical como Ponte Poética I

(o caixão está vazio)

o famoso pós-moderno não é um conceito tão bem explicado como costumam pregar nos círculos intelectuais e semi-intelectuais. o mais comum de se ouvir e ler é que o pós-moderno não acredita na crítica (já que o fato não existe mais a análise se torna obsoleta)

não se trata (quando falamos sobre a morte do fato) da inutilidade crítica – já que ela, a crítica como a vejo, não visa uma imposição –, mas da utilidade do Princípio da Incerteza de Heisenberg

não podemos precisar, simultaneamente,
o momento e a posição de uma partícula

a visão que tenho do crítico atual é a do neurótico, que não permite o gozo
(se eu não gozo, o ouvinte não pode gozar)
agente-repressor do desejo
desbaratador do eros, do tesão musical, impedindo que o corpo do receptor receba e libere fluxos não captáveis, não mensuráveis, pela frágil técnica descritiva que se emprega atualmente nas análises musicais

a crítica é sim, carregada de subjetividades. ela não pode ser objetiva
o diferencial do ato crítico na atualidade reside no fato de que ele pode servir de ponte poética, já que pode ampliar e potencializar algumas vontades (desejos) da obra
não se trata aqui de um processo de isolamento de elementos, mas de sua ampliação (tornar o micro visível ao lhe propor lentes)
criar pontes

quando uma postura assim é assumida
a música responde a essa tensão
criando novas proposições
da mesma maneira que a crítica deve também
responder à tensão que algumas obras musicais
lhes proporciona.

*

o fim do eu uno, coerente, estável
não existe fato, do mesmo modo que não existe eu
não existem visões de um FATO
apenas visões que oscilam em torno de um campo gravitacional instável

  

(sobre o papel da crítica musical enquanto ponte poética):

um ato desse tipo não limita a experiência do gozo
(não age como elemento inibidor e castrador de uma vivência estética)

ele expressa o gozo – não racionalmente apenas,
mas também pelos fluxos do corpo – potencializado pela tensão e diálogo entre os dois

não é necessário que eu desenhe a importância de uma relação formal entre produção musical e crítica. O fazer musical dialoga, desafia e impulsiona o fazer crítico, na mesma medida em que cria sistemas em que o sujeito cultural, por si só não dá conta {já que a cultura imprime em seu corpo a nódoa do apetite voraz por tudo o que é fácil}. somente os que acreditam piamente na velha ideia de um sujeito imutável, que opera segundo leis imutáveis (da noção de um eu confortável e estável), compactuam com a ideia de cristalização, tanto do fazer musical quanto do crítico

quando realizamos a escritura de uma crítica a partir de pulsões poéticas, não estamos resolvendo os problemas estéticos de uma obra, fechando-a em uma caixa de conceituações cuja chave é guardada por ferozes cães teóricos. o que se cria é uma relação formal entre obra e receptor, baseada em subjetivações e explicitações dessas mesmas pulsões.

 

(CRÍTICA NÃO É MARKETING. TRATA-SE DA EXPOSIÇÃO DAS SUBJETIVIDADES NA RELAÇÃO FORMAL ENTRE OBRA E RECEPTOR)

a decadência, ou melhor, a incompetência da crítica atual, está ligada à política do bom vizinho (à síndrome do vira-lata, como diria Nelson Rodrigues) que impede a manifestação (a realização de uma escritura que intua, que se coloque no objeto de sua análise pelo movimento da intuição) de uma experienciação estética, tudo porque há uma necessidade de compactuar com moldes já estabelecidos

 

haja vista que assim como a criação de uma obra musical não se dá por relaxamento {por pura e simples intuição} tampouco  assim acontece com o fazer crítico

a invenção nunca está descolada da história. ela está sempre ligada a ela pelos fios condutores de sistemas que se tensionam (dialogam), provocando respostas poéticas inovadoras aos desejos desses sistemas; assim sendo, a CRÍTICA é UMA das respostas possíveis a eles (a escritura de uma crítica, enquanto ponte poética, pode também desenhar respostas impossíveis para tais sistemas de desejo, disparando no receptor e no artista subjetivações-problema que necessitam de respostas (da mesma forma que a obra para a com a qual dialoga também necessita))

é sempre através da tensão
de deslocamentos e movimentação do intelecto
que é possível a criação em ambas as esferas

ao corroborarmos com as técnicas vigentes, com o cânone atual – que é anódino, pulsilânime e boçal – estamos sendo sugados pelo centro gravitacional de um buraco negro

{a cultura é um imenso buraco negro que a tudo absorve e oblitera}

 

por Jocê Rodrigues.

 

Imagem de capa: Salvador Dali – The Broken Bridge and the Dream 1945 

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Jocê Rodrigues Escrito por:

Jornalista, escritor e poeta, autor dos livros "As Máquinas de Deus" (ed. Multifoco) e "Luna: o canto que também provoca maremoto".

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