
Quando Cecília se encontra na difícil tarefa de escolher entre realidade e a ilusão, ao se defrontar com seus amores imaginários no filme A Rosa Púrpura do Cairo (1985), do diretor Woody Allen, a moça estabelece o limiar entre ficção e vida real: são, os filmes, o escape da Grande Depressão de 1929 ou da sua depressão, advinda da normalidade que nós, mortais, estamos inerentes a enfrentar, ao contrário dos nossos amigos de celuloide?
Todo cinéfilo é um curador, aquele ser vigente que guarda seus frames como se fossem tesouros a serem compartilhados, ou quando entra numa locadora, tal qual uma criança numa papelaria e escolhe como vai colorir seu mundo, onde picotar, o que dispensar, e o que lhe atrai o olhar. Curadoria cinéfila traz em sua carga a emotividade de uma doença crônica, quase bipolar: amamos e odiamos com a mesma intensidade. E se desprezamos uma corrente cinematográfica ou determinado filme, fazemo-nos com a propriedade de um inquisidor. Não ousamos sequer citar o nome do maldito. Curador; aquele que é responsável pela conservação da arte ou de determinada expressão artística que deseja transmitir. Quando organizamos festivais ou mesmo clubes para sentarmos e debatermos sobre escolas ou projeções fílmicas, a escolha pessoal de qualquer membro sempre irá decidir os rumos da conversação. Seja ela informal ou institucionalizada.
Para Alan Campos, estudante do quarto período de Cinema da UFPE, a prática da cinefilia começou desde criança, quando atraído pela História dentro da estória dos filmes, uniu em seu imaginário infantil o estudo do cinema como profissão e paixão pessoais na esfera acadêmica. Agora é um dos membros de um cineclube improvisado com os amigos Barbara Carvalho, Mário Rolim, Guilherme Padilha e Houldine Nascimento. A união surgida da necessidade de debater sobre filmes para além da sala de aula, e da fome por outros títulos, que não apenas os indicados pelos professores, passaram a ser cotidiano dos estudantes, que se organizam de acordo com a disponibilidade da carga horária de cada um e da salas, para poderem realizar a projeção dos filmes.
Fernando Mendonça, bacharel em Biblioteconomia, mestre em Letras e doutorando em Literatura Comparada na UFPE, também é um amante dos filmes desde antes de saber que o era propriamente, enquanto estudo acadêmico. Interrompido de continuar como membro ativo do Cineclube Dissenso (que acontece aos sábados, às 14 horas, com entrada gratuita) e curador de mostras cinematográficas, como a de Cinema Português na Caixa Cultural no Recife, ocorrida entre os dias 21 e 26 de maio deste ano. Atualmente, realizou, em conjunto com o cineclube de Letras, uma mostra sobre Hitchcock no Centro de Artes e Comunicação. Qualquer um que conheça Fernando já liga seu amor a mostras, cinema e literatura ao seu mundo e sua personalidade:
“Sinto que me despedi em grande estilo, lá na mostra portuguesa da Caixa. Foi uma sessão linda. Escolho os filmes, puxo o debate pós-sessão, bombei na divulgação. Quando eu amo eu faço acontecer. E ponto. Mais uma grande memória.”
Escritor, teve que interromper suas atividades curadoras do ano para se dedicar à tese de doutorado, mas não sem remorso. Acaba de publicar seu segundo livro, Um detalhe em H, mais uma viagem pelo universo de Fernando, dessa vez literária, que acaba por ser ele mesmo em si:
“Esse vermelho que me é cinema, paixão e vida…” (na mesma tarde em que conversamos sobre Maya Deren e o mundo vermelho, caso ela filmasse em cores), como afirma.
“Escapar é preciso, pois, diante da insatisfatória realidade, surge o imaginário mais real do que a própria vida: a projeção do cinema em qualquer meio, em qualquer formato de tela, em conversas de botequins e em sala de aula”
Esta mera colecionadora de imagens e de escape cinematográfico que vos fala, também é um rato de cinema. Quando a Cecília do Allen e a Cecília colunista se mesclam em minha própria sinestesia cinéfila: assistir a filmes é preciso. Escapar é preciso, pois, diante da insatisfatória realidade, surge o imaginário mais real do que a própria vida: a projeção do cinema em qualquer meio, em qualquer formato de tela, em conversas de botequins e em sala de aula. Pois que não admitimos a prática da cinefilia como alienadora, mas como uma busca eterna já fracassada pela incapacidade de abraçarmos o mundo com nossos pequenos braços humanos. Todos os filmes que queríamos nessa mania ordinária da existência que teima mais do que tudo em ser uma só; e os filmes, a quantidade deles, e nosso carinho são maiores até do que desejaríamos cultivar, mas que existe para além de nós, os filmes, são os filmes.
por Cecília Shamá.
Publicada originalmente na revista pq? – ed. 05
Imagem de capa: Pôster do Festival Internacional de Cinema e Belas Artes em Bruxelas (1947-1947), por René Magritte.
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