por José Juva.
“abandonar tudo. conhecer praias. amores novos.
poesia em cascatas floridas com aranhas
azuladas nas samambaias.
todo trabalhador é escravo. toda autoridade
é cômica. fazer da anarquia um
método & modo de visa. estradas.
bocas perfumadas. cervejas tomadas
nos acampamentos. Sonhar Alto.”— Roberto Piva
Estivesse vivo, Henry Charles Bukowski estaria com noventa e cinco anos – provavelmente bebendo bons copos de uísque com um pouco d’água, ganhando e perdendo dinheiro nas apostas das corridas de cavalo, vociferando contra os mortos-vivos que perambulam pelos supermercados, que trabalham nas agências bancárias, que vão e vêm pelas avenidas intermináveis e ensolaradas prenhes de garotos sorridentes e estúpidos e senhoras piedosas. Minha memória é uma plantação repleta de gafanhotos e eu não lembro como tomei conhecimento da obra do velho Buk. Um lampejo de lembrança indica que a obra dele veio junto com alguns companheiros de viagem, outros livros de Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, Henry Miller, Anaïs Nin.
As primeiras leituras dos textos do velho safado (dirty old man) foram, a um só tempo, um mergulho vertiginoso no abismo de dores e misérias da condição humana, calcado no registro inventivo e ferino dos devaneios e deambulações de bêbados, prostitutas, trabalhadores braçais etc. pelas carcaças da realidade, bem como uma corrida com sorriso largo provocado aqui e ali por diálogos deliciosamente nonsense, frases rápidas e certeiras, telegramas surreais de uma alma anárquica encharcada por um cinismo filosófico e por um ceticismo debochado – alma carregada de uma ternura atormentada, capaz de rir de si mesma e estender seu riso sobre tudo, sobre o absurdo partilhado na vida cotidiana (penso aqui numa cena do filme A guerra do fogo: quando os sujeitos estão apreensivos, com medo de um ataque rival, e também entediados, e um deles joga uma pedra na cabeça do outro, ao que todos começam a rir efusivamente, enquanto o sujeito atingido coloca a mão no ferimento, vê o sangue, e também desata numa risada fragorosa).
As leituras foram se sucedendo, um volume foi se sobrepondo ao outro, e livro após livro o encanto e o prazer desdobrado pelas costuras de histórias simultaneamente hilárias e melancólicas ia se afigurando como um pequeno diamante banhado em sangue. A escrita visceral de Bukowski construiu uma imagem corrosiva, ácida e lúcida do artista quando miserável, pleno de compaixão irreverente por toda sorte de vagabundo (e ele próprio um grande e entusiasmado vagabundo, apesar de dezenas de empregos sem sentido e passageiros, apesar do serviço nos correios por anos, um vigarista iluminado pela sabedoria não-domesticada pelo trabalho/tripalium), bebedor sob o signo da solidão num quarto escuro de uma pensão ou hotel barato, camarada obsceno/transcendental datilografando delirantemente a intimidade desconcertante dos espíritos e corpos atravessando uma estação no inferno e seguindo a jornada de trepadas e bebedeiras visionárias.
“de caráter extremamente autobiográfico, as criações de Bukowski constituem um ensaio de aproximação de si mesmo para acercar-se do mundo e dos homens”
E aqui é oportuno salientar certa interpretação ressentida que toma as narrativas e poemas do velho safado como mera transposição da biografia para o papel – acepção claramente apoiada na ideia subliminar de que a arte deve ser uma engenharia empenhada na construção de uma torre de marfim, um empenho contra a vida, o vivido. Certamente de caráter extremamente autobiográfico, as criações de Bukowski constituem um ensaio de aproximação de si mesmo para acercar-se do mundo e dos homens, uma elaboração criativa da vida como campo de experimentação poética, alargando as margens de manobra para uma escritura “manchada de vinho”, ultrapassando os regimes da tradição e as expectativas sociais e inventando a literatura como chave de possibilidades para o autoconhecimento e para a compreensão do outro, a literatura como um amálgama entre vida e palavra, respiração e leitura, músculos e performance poética, etc. Uma escritura poética mamífera.
Os ensaios – “Essais“, tentativas, testes, etc. – de Michel de Montaigne ou alguns slogans do poeta Roberto Piva – “não acredito em poeta experimental sem vida experimental”, “escrevo com o que sobrou da orgia”, podem servir de pistas para indicar, nos textos de Charles Bukowski, o sentido da filigrana composta por uma biopoética. Ou podemos saquear um trecho ilustrativo do próprio Buk: “(…) para muitos, a poesia deveria dizer apenas coisas seguras ou mesmo nada, pois a poesia é um mundo seguro e um caminho seguro para essas pessoas. A delicadeza de sua poesia reside em falar apenas sobre aquilo que não importa. A poesia no mundo deles é como uma conta bancária. (…)”. Ou como registrou no título de dois ensaios, Bukowski escreve “em defesa de um certo tipo de poesia, um certo tipo de vida, de um certo tipo de criatura com sangue nas veias que um dia morrerá”, antes registrando “um ensaio errante sobre a poética e a vida visceral escrito ao longo de seis cervejas (grandes)”.
Termino este pequeno ensaio, escrito ao longo de quatro lapadas de cana, duas garrafas d’água e vinte pitangas, numa manhã de sábado, olhando para os livros de bolso do Fanfarrão do Absoluto, o velho Bukowski, que deixei em cima da mesa do computador. Tenho comigo: Cartas na Rua, Misto-Quente, Factótum, Notas de um velho safado, Ao sul de lugar nenhum, Hollywood e Pulp. Outros dois, emprestados por um amigo: Mulheres e Pedaços de um caderno manchado de vinho. Dos poucos livros de poemas de Buk em português não tenho nenhum. Torço pela empreitada de algum editor bêbado e de um tradutor chapado: publicar em português volumes da poesia completa, pelo menos uns dois calhamaços, do vidente depravado e sincero Buk.
Publicado originalmente na revista Outros Críticos #9 – versão da revista on-line | versão da revista impressa
Arte: Ganjarts
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