
por Carlos Gomes.
Para Bruna, Fernanda e Rodrigo.
Cidades e canções se assemelham por carregarem em seus corpos a presença do tempo desconstruído de sua forma linear, cronológica, a que nos habituamos a reconhecer. Sua forma aparentemente reconhecível pode ser subitamente destituída se penetrarmos no que lhe pertence de mais profundo. Cidades e canções são feitas de muitas cascas.
a história da magrelinha
Eram já horas de estradas quando no caminho de casa encontramos Dênis: “Sinceramente, não gosto da cultura daqui. ‘guerreiro, guerreiro!’. Eu levo os turistas para ver esse pessoal dançando, vestido de rei, mas não gosto. Eu queria assistir uma ópera na cidade.” Rimos todos. Embates sutis entre o local e o estrangeiro, o turismo adestrado, entre outras pequenas digressões, se dão até que Dênis nos conduz para dentro de sua casa, já íntimos conosco como estava: “Eu adoro minha magrelinha”. Assim se referia para falar sobre sua filha, leitora de Potter, estudiosa e que em 2014 gostaria de estar nas ruas de junho com os seus amigos. Dênis mostrou como a PM infiltra pessoas entre os manifestantes para provocarem confusões dentro das passeatas; com essa estratégia a magrelinha desistiu, pelo menos por enquanto, de ir a manifestações de junho. Ainda se desejasse ir, Dênis estaria lá: grandioso, falante e cheio de carinho e violência sobre quem se metesse a tocar um dedo na sua magrelinha. Descemos querendo conhecer de perto a magrelinha e com o pesar de que o tempo de estrada seja longo demais para as horas e curto para as amizades.

a história de gabriel
Horas antes da primeira apresentação da noite do festival Lab, nascia Gabriel, sobrinho do músico que se apresenta com voz assombrosa, violão, dedilhados, aços de outras cidades, nações e toda uma geração de cantautores folks pesando sobre os ombros. Ele soube dizer suas palavras. Guaiamum (Daniel Ribeiro) tinha na voz a condução ao mesmo tempo serene e intempestiva de conduzir suas canções. Serena como melodia, intempestiva como volume. Como soava bonita essa combinação no pequeno cinema-teatro na beira-mar da praia de Pajuçara. Como uma pérola, entre as lojas da galeria e sob um comum edifício residencial. Mais tarde, o músico encontrou um outro cantautor, o americano Albatross, convidado surpresa do festival. Tiveram seus momentos solos, mas quando se encontraram, deixaram para trás os microfones e amplificadores e foram para beira do palco, cantar como quem narra uma história. Ouvimos mais, porque concentrados nesse lugar estético que eles nos propuseram. Estarmos numa sala pequena contribuiu para que os sons das vozes e violões pudessem reverberar pelo ambiente sem a ajuda de qualquer tipo de captação, e, na penumbra, pudemos enxergar da música silenciosa que ambos reverberaram para todos na sala.
a história do outro gabriel
Gabriel acordou de um sonho batizado Givly Simons. Desdenhados cabelos, jaqueta com a inscrição “lambada quente”, pernas magras, jeans apertados, sandália rasteira, desconstrução dos arquétipos, e o que vemos é a máxima de que é preciso que “sejamos corajosamente ridículos”. Em sua inteligência, entre apresentador desleixado e inquieto improvisador, conhecemos uma canção playback chamada “Fofinha”, e descobrimos que a tal ‘lambada quente’ pertence ao Figueroas, formada justamente por aquele cara que apresenta o festival Lab, canta, anuncia single, nos faz rir e ficar espantados por sua capacidade de nunca deixar a palavra cair no chão, perder sua força. Não sei se suportaria mais que os cinco minutos de “Fofinha”, lambada quente e Figueroas, mas o conta-gotas de sua presença irradiou o quê de sisudez que festivais de música pudessem ter. Nos divertimos muito. Na noite ainda caberia um grupo de garotos enaltecidos pela festa que é fazer música em sua cidade, rodeados de amigos, mas a viagem de Recife até Maceió já tinha sido muito cansativa. Duas músicas e fomos levados pelo sono embora dali.
a história de heloísa
Uma jangada chamada Heloísa atravessou a areia da praia e adentrou o mar. Fomos levados pela gentileza de Banha e conduzidos mar adentro pela impaciência cômica de Paulo, que nos afastava da multidão de jangadas e turistas, como se quisesse nos pôr em contato com um mar, uns peixes, uns corais que só ele via, transparência da água e rajadas de vento que ele desejava mostrar somente pra gente. Bruna fez uma foto bonita dele. Na hora e agora imagino o quão distante ele poderia ir com aquela embarcação, com esse tipo de cuidado que ele tinha conosco. Quando voltar a essa praia vou novamente atrás de Banha e Paulo, já que agora sei que são eles que guardam os segredos que fazem a memória sempre ir buscar mais atrás, rememorar o que foi bom. A semana seguinte ao festival foi também assim. Ouvi repetidas vezes os dois últimos discos de Franny Glass, como se quisesse prolongar o fim de semana, eternizá-lo.

a história de victor
Todos os participantes dos dois dias da 5ª edição do festival de música Lab fizeram questão de lembrar que nada daquilo seria possível sem a iniciativa de Victor de Almeida, produtor e curador do festival. O Lab só acontece porque a vontade de fazer música, promover encontros, mover com as próprias mãos a agenda cultural insossa, em muitas das cidades, é bem maior que as dificuldades que a falta de divulgação e de patrocínio impõem. Em 2012 o Lab trouxe Gonzalo Deniz e seu projeto solo Franny Glass, que na companhia de violão, dedilhados, voz concisa e suas narrativas em castelhano dão por hipnotizar as plateias dos inúmeros shows e ambientes por onde Gonzalo já circulou com sua pequena ficção reinventada da obra Franny and Zooey, de J. D. Salinger. Não satisfeito em ter a voz e o violão de Franny Glass, Victor ensaiou com uma banda para acompanhar Gonzalo em seu show de encerramento do festival. Portanto, não satisfeito em fazer todas as funções, pôs-se no palco a tocar guitarra, ser vocal e banda, com mais três músicos amigos seus, Marinho na bateria, que abriu a noite lançando suas primeiras canções em projeto solo, Bruno Jaborandy no baixo e Joaquim Prado na segunda guitarra. O show foi tão bonito quanto tenso.
Conheço a música de Franny Glass desde 2008, quando caí em seu myspace e descobri a canção “Emiliano y Juana”, de seu primeiro disco. A sua discografia já está no quarto disco e mais uma trilha sonora. A maioria das canções da noite foi dos dois últimos discos, e apesar de conhecê-las, ouvindo ali de perto Gonzalo, Victor e seus amigos, nessa conexão improvável entre Montevidéu, Maceió e a Recife que me atravessava nessa escuta, estive também entre a beleza das canções e a tensão desse encontro. Nada podia dar errado, eu pensava. Mas microfonias arrebentaram as primeiras músicas e jogaram na minha cara que a vida é feita de desastres e belezas. Aos poucos, vozes e silêncios acharam seus lugares de conforto e pudemos ouvir números solos de Franny Glass e a volta de Victor e da banda emocionando a todos que partilharam desse lugar e tempo que, pelo menos para mim, parece não querer obedecer ao seu curso natural de passagem, já que ainda sinto a presença constante daqueles pedaços de hora e música, ou como diz a letra da canção: “el amor anda suelto por ahí”. Aproveitemos.
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