Asa Asa: do canto ao recanto

por Marina Suassuna.

Em 1965, Elis Regina recebia um bilhete de Vinícius de Moraes pouco antes de subir ao palco da final do 1º Festival Nacional da Musica Popular Brasileira: “Arrasta essa gente aí, Pimentinha”, dizia o poeta, autor da música “Arrastão” junto com Edu Lobo. A canção seria interpretada por Elis na ocasião e transmitida em rede nacional pela TV Excelsior. Em plena década de 1960, os festivais de música popular – ou festivais da canção – eram as principais vitrines dos compositores e intérpretes brasileiros. De caráter competitivo, esses eventos tinham vários critérios para a eleição dos vencedores. Mas a maneira como a canção chegava ao público, dependendo de como o cantor/intérprete se colocava no palco, era decisiva. O que conquistou o júri e a plateia do festival da TV Excelsior em sua primeira finalíssima foi justamente a interpretação explosiva e dramática de Elis Regina que, fazendo jus ao nome da canção e seguindo o conselho de Vinicius de Moraes, “arrastou” todos os presentes e aqueles que a acompanhavam pela TV, saindo vencedora daquela edição. Depois desse episódio, surgiu na imprensa o apelido de Élice Regina, criado por Ronaldo Bôscoli.

“Além de mergulhar nos versos como um tubarão, Elis iria acrescentar duas marcas registradas de seu estilo. Uma delas eram os movimentos dos braços, que tanto chamaram atenção e que sugeriam o ato do pescador puxando a rede”, conta o musicólogo e jornalista Zuza Homem de Mello no livro A era do festivais: uma parábola. O tal nado de costas, como ficou conhecida a coreografia da cantora quando girava os braços freneticamente enquanto cantava, realçava não só suas apresentações, mas principalmente a composição de Vinicius e Edu Lobo. Uma espécie de espelho daquilo que a música queria transmitir. Outra técnica implantada na época pela intérprete foi a chamada “desdobrada”, tradicional nos shows da Broadway, que criava um clima dramático e contagiante. Trazida pelo bailarino americano Lennie Dale, que integrou o Dzi Croquettes, a desdobrada era, segundo Zuza Homem de Melo, tudo o que as canções precisavam para impressionar o júri e empolgar a plateia, passando a determinar o modelo das músicas de festival. “Além de ressaltar a marcação da frase, a desdobrada causava um dinamismo tão invulgar que o público era levado a aplaudir ali mesmo, antes de a música terminar. A técnica caiu como uma luva na interpretação de uma cantora como Elis, que, sabendo como criar e explorar a dinâmica de uma canção deu um novo destino ao seu visual e ao da própria música popular brasileira na televisão”.

A discussão sobre Elis ser mais técnica ou emoção rendeu bastante. O fato é que a leitura que a cantora fazia da canção não deixava dúvidas sobre a mensagem que o compositor queria passar. A Pimentinha foi o maior exemplo do que a autora Marília Laboissiére definiu como interpretação musical: “um processo pelo qual uma personalidade musical ímpar e singular atua sobre a música a fim de revelar sua substância, seu conteúdo ou seu significado”. Esta postura fica bem esclarecida pelo jornalista Danilo Casaletti, no ensaio “Elis mudou, não o disco”, em que analisa o álbum intitulado Elis, de 1973: “Em ‘Doente, morena’, por exemplo, composta por Gilberto Gil em parceria com Duda Machado, a angústia na voz de Elis revela toda a solidão retratada pela letra que fala da personagem que deita sobre os trilhos e vê o tempo e a vida passar. A força e tensão colocadas em ‘Agnus sei’, umas das primeiras parcerias de João Bosco e Aldir Blanc, ajudam a dar vazão à história criada pelos autores para denunciar a hegemonia que o Ocidente sempre tentou impor ao Oriente”.

Num dos episódios da série Compositores Reunidos, exibida pelo Canal Brasil, Pedro Mariano, filho de Elis com o arranjador e produtor César Camargo Mariano, comenta: “Uma coisa interessante do trabalho do intérprete é isto, se apropriar da música como se fosse dele”. Neste caso, seria o intérprete uma espécie de coautor? O fato de protagonizar a canção e exprimi-la ao público torna a música tão sua quanto de quem a escreveu? “Na cabeça da Elis, um disco era como um filme: deveria ter começo, meio e fim, precisava contar uma história, uma música tinha de ter afinidade com a outra. Era nesse momento que ela se tornava autora, sem tocar nenhum instrumento. Era aí que ela imprimia sua personalidade”, declarou César Camargo Mariano em entrevista à revista Brasileiros

Pedaço duma asa, voo potente

Para o artista plástico e compositor Nuno Ramos, o intérprete é quem oferece o verdadeiro gozo e usufruto da canção. “A canção tem uma alma procurando baixar num corpo. O compositor que não canta, como eu, oferece uma coisa a ser preenchida. Nesse caso, o intérprete é o principal autor comunicando. Há uma intenção no intérprete, cada detalhe, cada momento, sensação. Tudo isso é altamente autoral. O compositor dá apenas uma base”. Nuno já teve composições suas gravadas por Gal Costa, Nina Becker e Romulo Fróes. Mas foi na voz de Mariana Aidar que suas letras ganharam forma e volume de uma maneira bastante peculiar.

O primeiro encontro de Mariana e Nuno foi em 2007. Logo, ela passou a gravá-lo em seus discos e emprestou sua voz à sonorização de Bandeira Branca, instalação de Nuno exposta na 29ª Bienal de São Paulo de 2010. Em 2013, foi convidada para participar do projeto Palavras Cruzadas, de Marcio Debellian, cuja proposta era reunir, num espetáculo, artistas da palavra, da música e da imagem. Mariana não hesitou em escolher Nuno. A partir do espetáculo nasceu Pedaço duma asa, quarto disco de estúdio da cantora, que mergulhou no universo poético do compositor como se as canções tivessem sido feitas pra ela.

No release do disco, Debellian apresenta Pedaço duma asa como um trabalho que “amplia o que se entende por parceria e composição”, indo além do “tradicional caso de uma cantora que grava um disco homenageando um compositor”. Trata-se de um trabalho de dois artistas que “pactuaram alcançar toda a potência poética do repertório que criaram”. Sim, “criaram”, no plural. Pois a intérprete se mostrou ativa durante toda a elaboração do repertório, desde a seleção das músicas até a identidade que cada uma delas viria a assumir. “Nos primeiros ensaios, Mariana já mostrava grande propriedade do repertório, íntima daquelas palavras”, conta Marcio Debellian.

“Minhas letras são muito abstratas e Mariana sempre enxergava personagens nas canções, uma mulher e um homem. Ela quase me explicava a minha própria canção.” – Nuno Ramos

A expectativa que toma o compositor quando este resolve ceder suas letras a outros intérpretes se divide entre a surpresa e a “traição”, segundo Nuno. Se tratando da surpresa, a contribuição do intérprete acaba por revelar, muitas vezes, nuances ou até mesmo facetas da música que nem o próprio compositor havia se dado conta. Nuno confessa que, ao ouvir suas músicas na voz de Mariana, passou a enxergá-las de maneira diferente. “Minhas letras são muito abstratas e Mariana sempre enxergava personagens nas canções, uma mulher e um homem. Ela quase me explicava a minha própria canção. Ouvir a Mariana cantar minhas letras muda tudo. A canção vai pra outro lugar, ganha um outro sentido”.

“Um negócio bem complexo.”

Na procura por alguém que dê corpo à sua poética, o compositor legitima a voz que comunica, tornando-a, muitas vezes, indissociável à natureza do que foi criado. Assim é a relação que Caetano Veloso estabeleceu com Gal Costa. Ambos escreveram seus nomes na história da música popular brasileira de maneira indissolúvel. Os versos de Caetano parecem ser feitos sob medida pros graves e agudos da cantora, que se tornou uma espécie de estética musical perfeita da obra do baiano, sua intérprete maior. “É muito comum eu compor pensando na Gal pra cantar. Não só em Recanto, mas através das décadas”, declara Caetano no DVD do show Recanto, de 2012, no qual assina todas as músicas do repertório. A união entre eles foi selada, involuntariamente, pela gravadora Phillips em 1967, quando, na impossibilidade de produzir dois álbuns, contratou os dois e juntou-os em um só disco, intitulado Domingo. Foi o primeiro registro da carreira de Gal e de Caetano, trazendo doze faixas, das quais Caetano Veloso canta solo em quatro, Gal Costa em cinco, e juntos, dividem três canções, entre elas “Coração Vagabundo”, escrita por Caetano.

Com exceção dos álbuns temáticos de cada um deles, Gal e Caetano raramente se desvincularam ao longo de suas carreiras. O artista baiano participou de todos os discos da intérprete, como compositor ou como convidado. Não escapou nem do álbum mais underground da amiga, Fa-tal- Gal a todo vapor, gravado e lançado em 1971, enquanto esteve exilado em Londres. No repertório estavam músicas de sua autoria como “Não se esqueça de mim”, “Como 2 e 2”, “Coração Vagabundo” e “Maria Bethânia”. Na volta do exílio, Caetano desenvolveu o conceito do álbum e do show Cantar (1974), que apontava para uma nova fase da intérprete, se distanciando do perfil barulhento e reafirmando a Gal bossa-novista de Domingo. Entre as músicas do repertório, Caetano assina “Flor do Cerrado”, “Joia” e “Lua, lua, lua, lua”. “Foi isso que me uniu muito a Gal e me fez ter sempre momentos renovados em nossas vidas. Ter sempre a oportunidade de criar alguma coisa junto com ela que fizesse sentido e sempre tem feito. A gente conquistou um negócio bem complexo”, afirma o compositor.

Gal reflete, através de sua voz e corpo em cena, aquilo que Caetano deseja ver e ouvir em sua plenitude. A intimidade que a intérprete estabelece com as canções que chegam pra ela é uma espécie de cordão umbilical, que a torna empreendedora da verdade da canção, ratificando a paternidade dupla da obra. Em matéria assinada por Priscilla Campos no Suplemento Pernambuco, o jornalista e crítico musical Marcus Preto reflete: “Gal tem um entendimento da canção que foge da vulgaridade das interpretações marcadas, intencionais. Ela entende a canção de dentro pra fora, começando pelo cerne, pela essência, antes da compreensão prática. Acho que isso vem da escola de João Gilberto. Ele é o melhor cantor do mundo porque traz uma compreensão profunda da canção, não trabalha a partir da superfície, como a maior parte dos cantores. Gal aprendeu isso ouvindo João. Mas usou em outro contexto, mais de acordo com seu tempo. Acho que é por isso que Gal é tão aberta a correr riscos. Ela se arriscou no Tropicalismo, na contracultura, na explosão comercial dos anos 80 (em que o risco era perder tudo) e fez isso agora, com Recanto. Não tem medo do risco porque sabe que a música está com ela, profundamente”.

Se um dia Gal foi capaz de elucidar os sentimentos que lhe tomam quando se apropria das canções no palco, ela o fez se referindo a Recanto, sem perceber, na verdade, que fornecia um pequeno, mas poderoso retrato de sua essência interpretativa. “As canções vivem em mim, me habitam enquanto eu faço o show. É uma coisa muito verdadeira, muito forte e bonita. Eu digo sempre que esse show é uma entidade que me arrebata e me toma”.

Publicado originalmente na revista Outros Críticos #9 – versão da revista on-line | versão da revista impressa

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Marina Suassuna Escrito por:

Jornalista, estuda na Pós-Graduação em Fotografia e Audiovisual na Unicap. É repórter da revista Outros Críticos e colabora nas revistas Continente e Cardamomo.

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