Em junho de 1972, no período pós-tropicalista, quando Caetano Veloso havia acabado de retornar ao Brasil depois do exílio em Londres, o músico escreveu: “O tropicalismo foi uma árvore de mil frutos. Digo isso sem orgulho, sem remorso. Os frutos pecos e podres se espalharam pelo chão e ninguém melhor instalado para sentir-lhes os fuçadores de raízes”. O manguebeat e a tropicália guardam, seguramente, inúmeras diferenças, mas é possível percebermos certas características comuns aos dois movimentos culturais (ou movimentações, como preferem os articuladores do manguebeat), e, seguindo a analogia que Caetano apresenta no texto aqui destacado, ambas as árvores foram responsáveis por frutificar múltiplas vozes, já que a pluralidade de estilos foi uma das principais marcas dos movimentos. No entanto, a quem Caetano se refere quando fala de frutos pecos e podres espalhados pelo chão? E se trocarmos tropicalismo por manguebeat e aplicarmos a mesma analogia ao período pós-mangue na música brasileira? Bandas como Acabou La Tequila, do Rio de Janeiro, com músicos como Kassin, Domenico e Pedro Sá, Planet Hemp, de Marcelo D2 e B Negão, e até bandas anteriores ao manguebeat, como Os Paralamas do Sucesso, sofreram forte influência da música produzida pelas bandas de Pernambuco dos anos noventa. São, de certa forma, juntamente com artistas pernambucanos como Siba, Otto, Dj Dolores e Mombojó, de alguma forma, herdeiros do manguebeat, fazem parte dos mil frutos. Quem seriam, nesse caso, os frutos pecos e podres que se espalharam pelo chão? Para Ricardo Maia Jr., nos ensaios reunidos em Entrelugares – notas críticas sobre o pós-mangue (2012), os frutos pecos e podres do pós-mangue são os outsiders, atuando à margem do mercado. Esses artistas buscam um meio viável de tornar a produção alternativa rentável, ou seja, renovar o mercado cultural, dar nova cara às velhas instituições culturais fincadas nas raízes da música pernambucana. Teria o manguebeat se tornado uma destas instituições, assim como o frevo ou o maracatu?
O livro de Ricardo tem a coragem de não suportar o silêncio, de provocar o ruído através da palavra crítica. A coragem de assumir criticamente o termo pós-mangue e começar a analisá-lo sob diversos pontos de vista é, de certa forma, uma primeira atitude de criação e crítica. E foi com o suporte crítico do ensaios de Ricardo e, sobretudo, do prefácio de Rodrigo Édipo, que enviamos inúmeras perguntas sobre o tema para diversos setores da crítica e música em Pernambuco, com o intuito de abrir um debate, de ouvir vozes distintas. Ser como foram o manguebeat e a tropicália: plurais.
por Carlos Gomes.
Confiram, a seguir, os depoimentos que colhemos sobre o tema.
A música pernambucana perdeu mesmo a euforia da renovação? A repaginação vem somente da transgressão?
Não acho que a música pernambucana perdeu a verve criativa. O que me parece ter ocorrido é que hoje há uma safra de bons criadores, mas que não possuem mais canais de distribuição e visibilidade. Claro que viver sobre a pressão de ser do lugar de origem do movimento mangue também gera ansiedades e um peso muito grande sobre as gerações atuais, desde a década de noventa que todo mundo que surge sofre comparações ou injunções sobre ser a continuidade (o novo) Chico Science ou Nação. Acho que houve muito investimento em políticas e debates que favoreceram o processo de criação, mas não houve o mesmo empenho em termos de formação de público e de um mercado autônomo. Atualmente, Recife não possui bons lugares para apresentações de público pequeno ou médio, não há um Estúdio PE, para levar público aos shows, e vale não esquecer que o grande mercado que move a música hoje é o consumo de música ao vivo, muitas das bandas locais dependem de atrações de fora do estado, ou seja, a produção autoral local muitas vezes passa de protagonista à coadjuvante.
Jeder Janotti Jr.
Não, a música pernambucana não perdeu a euforia da renovação, apenas que a renovação não tem mais tanto espaço, devido às estruturas engessadas em cânones citados por Ricardo Maia Jr. em seu ensaio. A transgressão é um dos modos de se repaginar algo ou alguma estrutura estética, pode até ser o caminho mais fácil (no sentido de rapidez na mudança) ou viável para isso, mas não é o único.
Diego Albuquerque
Como alguém de fora de Pernambuco, talvez eu não possa ser tão preciso na resposta, mas ao mesmo tempo, tenho uma visão diferente do que acontece aí. De certa maneira, eu vejo uma renovação, até mesmo no que vocês chamam de pós-mangue. Bandas como o Team.Radio, Foxy Trio, A Banda de Joseph Tourton, A Rua e outras, mostram que existe um fôlego novo no cenário de Recife. Não acho que essa repaginação venha somente na transgressão, ou seja, não é preciso que essas bandas sejam ruptura com nada para serem originais. Mas, de certa maneira, o diálogo com linguagens do manguebeat ou do pós-mangue inserem essas bandas de maneiras diferenciadas em Pernambuco. Fora daí, essa herança mangue vs pós-mangue não faz muita diferença.
Victor de Almeida
Não acho que tenha perdido a euforia, a renovação pode estar menos intensa, mas 180 lançamentos em um ano mostra que tem muita gente trabalhando, mas com menos mídia em cima.
Rogerman
Dentro da música POP brasileira, acho que o movimento mangue só tem equivalente com a Tropicália. São dois momentos de muita renovação da linguagem musical. O movimento não traz apenas uma renovação para a música que se fazia em Pernambuco, mas da música que se fazia no Brasil naquele momento. Basta olhar para os Anos 80 e ver o que foi produzido lá. Pouca coisa, de fato, podíamos chamar de visceral. Em geral, pareciam paródias de bandas inglesas e americanas. Dentre os que escaparam do lugar-comum, citaria Arrigo Barnabé, Itamar Assunção e mais um ou outro nome que, por motivos que não sei explicar, não influenciaram a música brasileira como poderiam ter influenciado. Se voltarmos aos Anos 90, veremos que nada que estava sendo feito no Brasil naquele momento se compara com o que Chico Science realizou. Tínhamos coisas muito boas, bem feitas, mas nada que parecesse imprescindível. Explico-me: o que torna algo importante, divisor de água? Simples, basta você pensar retrospectivamente e fazer a seguinte pergunta: se essa obra não tivesse sido produzida, o panorama musical seria o mesmo? Não há como pensar a música brasileira dos Anos 70 sem levar em consideração as experiências dos tropicalistas. A MPB seria muito mais pobre sem os tropicalistas. Por outro lado, a história da MPB não seria muito diversa se não tivesse existido Ednardo, Fagner e Ultraje a Rigor, por exemplo. Não tenho dúvida que é o reinventar da linguagem, do tencioná-la até o máximo grau possível que oxigena qualquer linguagem artística. Existe um modo de cantar antes e depois de João Gilberto, um modo de ler a música pop internacional antes e depois da tropicália, de fazer música instrumental antes e depois de Egberto Gismonti e Hermeto Pascoal, assim um modo de ler a cultura popular e o pop internacional antes e depois do manguebeat.
Anco Márcio Tenório
O pós-mangue é uma falácia? Ele é uma ressaca pós-efervescência ou uma evolução estética?
Primeiro não acredito em evolução quando se trata de arte. Evolução pressupõe que A é melhor do que B, isto é, se um carro fabricado hoje é superior tecnologicamente a um Ford 1928, um poema Concreto não é mais belo do que um verso de Homero. O que há na arte é um processo de mudança, de explorar outras possibilidades na linguagem. Neste caso, acho que a cena musical do Estado hoje é tão diversa e tão boa quanto era nos Anos 90. Aliás, se observarmos qualquer gênero artístico em Pernambuco vamos encontrar uma grande diversidade de linguagens. E isso é muito bom: mostra a criatividade e a oxigenação permanente da nossa vida cultural. A questão é: como fazer que esses músicos e compositores sobrevivam da sua arte. E quando se diz sobreviver se diz construir um público ouvinte, um público que saia de casa e pague para ouvir e ver um show. Enquanto esse púbico só sair de casa para ver shows promovidos pelo Estado, creio que não vamos criar as bases para criarmos uma arte que ande com os seus próprios pés.
Anco Márcio Tenório
O pós-mangue é uma falácia sobre falácias, pois nada mais é que um termo criado sobre um termo anterior (que já soava e era dado como uma falácia). O Manguebit é um retrato da cena de momento que deu certo, o pós-mangue no meu conceito seria mais um retrato de uma cena advinda deste momento anterior. Dentre os termos utilizados e os textos do Ricardo, ele se encaixa mais como uma ressaca pós-efervescência, mas também aparece como uma evolução estética, por que não?! Todo meio de pensar uma cena, acaba causando alguma evolução nessa cena.
Diego Albuquerque
Não acho que o pós-mangue seja necessariamente uma falácia, independentemente da felicidade, ou infelicidade, do rótulo que pegou, o que vejo é uma geração criativa de músicos que não se identificava totalmente com a hegemonia da cena mangue e buscou situar-se no mercado e no imaginário local buscando caminhos políticos e estéticos diferenciados. Como todo rótulo, ele tende a homogeneizar uma produção diversificada e que dialoga de várias maneiras com o peso da tradição (ou maldição) mangue.
Jeder Janotti Jr.
Falácia talvez seja muito pesado. Mas acho o termo um tanto quanto vago, até porque ele parece ser opor a algo numa classificação imprecisa. Para mim – e, inclusive, gente por trás do desenvolvimento da movimentação (ver o link) – o tal manguebit sempre foi uma alegoria para a diversidade musical da cidade. Seja ela representada por Lia de Itamaracá, The First Corinthians, Nação Zumbi, Mombojó, Volver, Desalma, Rogerman, Spok Frevo Orquestra, Devotos e não apenas a “mistura” de ritmos regionais com funk, rock, rap etc. Aliás, é curioso observar que o Mundo Livre S/A, um dos supostos ícones do mangue, não tinha e não tem quase nada de regional em seu som. Apesar disso, e com gente como Renato L e músicos “do mangue” tentando adequar o termo a uma realidade mais abrangente, ele acabou sendo classificado pela imprensa local e nacional como algo de características mais restritas. Assim, penso que o tal mangue (ou seja, a diversidade musical da cidade) continua em constante evolução, ainda que não possua o impacto de anos atrás.
Ad Luna
Não gosto da expressão “Pós-mangue”. Essa tendência estética, de certa forma, sempre esteve presente em Pernambuco. Gente como Anna Loves Thompson, Alice quer ser punk, Fractal Motivo, John Bigú e os Caronas, Azabumba, Barbies, Le Bustier, Badminton, Supersonics, Dolores Del Fuego, Inhame Jam, Mãe Joana emuitos outros já desenvolviam seu trabalho à margem do mangue. Esses seriam o quê? “entremangue”?
Existem novos artistas que impõem e desenvolvem seu fazer criativo. Ponto. Não vejo necessidade de falar em ruptura. Não é inteligente, nem estratégico. Não facilita as relações comerciais nem a compreensão do público. Não melhora a autoestima dos artistas nem aumenta o interesse dos investidores.
Gosto de pensar que temos agora uma geração criativa e contestadora. Músicos que estudam, que ouvem de tudo, estão abertos para o que acontece dentro e fora do estado, e que buscam sua impressão digital, seu estilo próprio. Isso é legal. E, de certa forma, ainda é fluxo do que houve nos anos 90. Não é “pós”, nem é “puro mangue” exatamente, mas, de uma forma estranha ainda pode estar (caso queria…) sob o guarda-chuva do conceito.
Desse modo, podemos sim falar em “evolução estética”. Gosto disso. Gosto de pensar que o que vivenciamos ainda reverbera. Me agrada a ideia de continuidade porque aponta para o futuro e constrói estradas ao invés de muros. O problema está em quem cobra e quem paga o pedágio. Criar outras derivações não vai ajudar, o que resolve sim, é tomar novas atitudes.
Rodrigo Édipo falou que eu precisava ouvir o Matheus Motta, fui ao show. Gostei. Depois Vinícius, que eu conheci no Pé-preto, e depois no Carfax, compartilhou o cd dele. Baixei. Estou ouvindo. Se há algo que eu tenha ouvido no passado, presente no som de Matheus, vou achar legal, e também vou aprender coisas com ele, com sua visão do mundo. Uma vez encontrei com Vitor Zalma, no FIG. Ele me apresentou uma menina que cantava no Sabiá Sensível e disse que eu precisava conhecer. No show de Matheus, ela participou. Fiquei de cara, muito boa. Vou procurar mais sons dela. Uns anos antes, um amigo de Jardim Atlântico me falou que ia ter um show no Espaço Oásis, uma banda de Olinda e outra de Candeias. É assim que as coisas acontecem. Do ângulo do espectador, não há essa fronteira de tempo/ espaço. Existe sim esse cenário “após mangue”, porém, penso que não seja necessário nomear um movimento (ou movimentação) específico. Acho ruim justificar uma coisa se utilizando de outra. Algo parecido já foi tentado. Pode soar, quase sempre, para alguns, como “recalque”.
Acho que a música feita por Matheus Mota, Ex-exus, DMingus, Mateus Alves, Saracotia, Profiterolis, Babi Jacques e os Sicilianos, Feiticeiro Julião, Chambaril, Publius, Mojav Duo, Circo Vivant, Caravana do Delírio, Dunas do Barato, Os Airados, Zé Manoel, Sabiá Sensível, Glauco e o trem (e tantos outros) é “música de qualidade feita atualmente em Pernambuco” e merece respeito pelo que é e pelo o que tem de relevante. O mangue pode e deve ser uma boa marquise pra quando a chuva vier. “Em caso de incêndio, quebre o vidro e retire…”, ele sempre estará lá. Antes não estava. Não havia nada em que se apoiar. Nem pra contestar.
Juliano Holanda
Os novos artistas são interditados pela sombra do Manguebit? Há mesmo uma concentração de investimentos públicos e privados nos medalhões?
Os novos artistas podem ser interditados pela tal sombra que ainda exista na cidade do Manguebit, mas não consigo afirmar isso com certeza absoluta. E sim, existe claramente uma concentração de todos os tipos de investimentos em artistas bastiões desta geração Manguebit e antes dela até, como Alceu Valença, entre outros. Eu acho até normal o respaldo privado em artistas com algum nome ou já consagrado, pois tais grupos privados visam um retorno mais rápido, o que me preocupa realmente é o uso da máquina, do poder publico para financiar pessoas que não necessitariam de tal apoio para isso. Criam-se as tais bengalas, já citadas anteriormente, onde os artistas se tornam funcionários públicos sem concurso.
Diego Albuquerque
Não creio. Até onde percebo, vejo que no Recife se escuta muito mais as novas bandas que surgiram nos últimos 10 anos do que Nação Zumbi, Fred Zero4 ou Otto. O problema me parece outro: é a forte dependência da cena musical do Estado (e isso parece que vem ocorrendo em outras regiões do País) dos financiamentos públicos. O fim das grandes gravadoras transferiu a promoção dos artistas para as TVs e os rádios. E estes meios só mostram o que faz sucesso ou toca a sensibilidade das massas. No caso, a música fácil, de empatia imediata, persuasiva. Com todos os problemas que tinham as gravadoras, elas eram, pelo seu poder econômico, um contraponto ao gosto da grande mídia. Sem elas, só resta o jabá dos artistas. A questão é: como sobreviver sem o apoio do Estado? Afinal, é no mínimo estranho que um músico que se quer contestador seja bancado por aquele que é o maior saco de pancada em qualquer sociedade moderna: o Estado. Ou seja, de um lado temos a mídia impondo o seu gosto; de outro, o Estado pautando o script do que deve ou não deve ser promovido. Nação Zumbi parece que conseguiu fugir desse script. Mesmo sem a força das gravadoras e da publicidade das mídias, eles vêm fazendo shows pelo Brasil dentro de um modo comercial, com público pagante. Parece que as demais bandas do Estado ainda não conseguiram fazer isso.
Anco Márcio Tenório
Ao contrário, nunca se investiu tanto dinheiro público em projetos dos não medalhões, mas sem dúvida um nome que tem 20 anos de trabalhos prestados tem mais força que um iniciante, isso em qualquer lugar do mundo.
Roger Man
Qual o papel da crítica perante esse panorama? É imprescindível termos uma imprensa alternativa mais forte?
O papel da crítica não deveria mudar, e realmente não mudou. Ela esta apenas engessada em um momento que não necessariamente existe mais, falando e dando espaço apenas para os bastiões. Isso por culpa de diversos fatores, desde o interesse financeiro e até do próprio publico, que não tem tido o interesse em consumir realmente o novo criado no estado de Pernambuco. E sim, é imprescindível criar-se uma cena independente mais forte, mais unida, mas que dialogue com o todo, sem se fechar em nichos ou grupos/movimentos. Pois esse talvez seja o principal erro da crítica e mídia de massa atual no estado de Pernambuco.
Diego Albuquerque
Em qualquer sistema artístico e intelectual a crítica é essencial. A crítica é o lugar do debate, do contraditório, da reflexão. Mas a questão é: até onde estamos preparados para o debate, a reflexão e o contraditório? Ou preferimos o tapinha nas costas, a falsa ilusão do que o que fazemos é de fato bom ou mesmo acima da média? Algo me diz que preferimos a segunda alternativa. Não adianta termos publicações alternativas – seja no papel impresso, seja em sites da internet – se o que vamos ler é sempre elogios, louvações. Tenho ouvido muita coisa ruim nos últimos anos, e sou induzido a comprar o CD que depois constato que é ruim porque a crítica que leio nos jornais e na internet é sempre elogiosa. Há muita coisa imatura sendo feita, com cara de brincadeira de adolescente de classe média que brinca de ser cantor, músicas que parecem ter saído dos anos 60 e 70. Pior: músicas que mesmo nos Anos 60 e 70 seriam inferiores a média do que foi realizado naquelas décadas. Para dar um exemplo recente de um nome muito propalado pela Mídia e que me decepcionou, cito o CD de Tibério Azul. Por outro lado, tenho surpresas muito boas, a exemplo do último disco de Vitor Araújo.
Anco Márcio Tenório
Publicada originalmente na edição de dezembro de 2012 do e-zine pq?.
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