A inquietude de Ná Ozzetti

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por Bruno Vitorino.

Vivenciamos na produção musical contemporânea um estranho fenômeno que se alastra com velocidade crescente: a substituição da obra de arte enquanto acontecimento único pelo fluxo contínuo dos estímulos sensoriais e efêmeros. Nesse sentido, testemunhamos os desdobramentos de uma indústria cultural voltada para a massificação extrema da produção artística, contornando os agora desnecessários requisitos da técnica, do talento e da experiência individual da arte, para fornecer ícones embusteiros, servidos na bandeja midiática do “novidadismo” e da transgressão estética domesticada, a grupos de indivíduos que levam uma vida cada vez mais estilizada. Assim, temos os virtuoses que não dominam seus instrumentos, os letristas que não sabem escrever, os cantores que transformam a desafinação em marca registrada e as bandas que apresentam a parca execução musical como algo grandioso e criativo que, referendados por uma crítica que não vai além da cópia de releases, são consumidos passivamente por um público homogêneo que busca tão somente o entretenimento fugaz para exibir em suas timelines. O triunfo do tacanho.

Mas, há os que resistem.

Em seu mais recente trabalho, a veterana cantora paulista Ná Ozzetti deu mostras de que, mais do que possível, é fundamental o trabalho do artista artesão que manufatura com esmero sua obra se utilizando do léxico simbólico de que dispõe para criar um mundo subjetivo. Embalar (2013), seu décimo trabalho solo, impõe-se como ateliê coletivo, orgânico e experimental, fruto do esforço criativo da cantora com parceiros de longa data e novos nomes do cenário nacional na busca pelo reinventar-se. “Você tem uma ideia. Você tem vontade de fazer algo novo para você, mas não sabe ainda o que é que vai acontecer. Eu acho que isso é um dos maiores estímulos do fazer”, diz a cantora sobre o projeto. E é justamente nessa propensão ao incerto que reside o grande trunfo de Embalar.

De modo quase anacrônico e audaz, é um álbum à moda antiga, com começo, meio e fim que se apresenta como um todo coeso, envolvido por uma singela beleza tanto no discurso poético quanto na construção dos arranjos que alicerçam a voz cristalina da cantora. A sonoridade do trabalho remete ao pop contemporâneo em suas letras que enaltecem o som das palavras, guitarras de timbres brilhantes, economia de material temático e simplicidade das formas. Contudo, em meio a isso tudo, há sempre um elemento inesperado que denuncia uma clara intenção ao risco, ao imprevisível: um desenho melódico rebuscado, uma ênfase ao aspecto rítmico do cantar, uma mudança brusca no andamento, uma progressão harmônica incomum. Movimento, enfim! Destaque para as brincadeiras rítmicas de “Embalar”, a atmosfera flutuante de “Minha Voz” (um belíssimo dueto com Mônica Salmaso, diga-se), a debochada crônica do amor lésbico de “Lizete” e o sambinha desconstruído de “Nem Oi”.

Longe da altivez do refinamento intelectual, o disco é um chiste da música bem feita. Um refúgio, um ato de resistência ante a corrosão do mercadológico. Por isso mesmo, altamente recomendado.

Foto de capa: Teresa Maita

* Publicada originalmente na 1ª edição da revista Outros Críticos.

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Bruno Vitorino Escrito por:

Compositor, baixista e colunista do blog Variações para 4.

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