A imagem-variação: sobre “Palavra e Imagem”, de Jean-Luc Godard

“O livro da imagem” é um dos mais belos e fascinantes monumentos à “variação universal” (Tarde, Deleuze), uma tapeçaria irregular modulando quadros, músicas,  textos e filmes (“arqueologia” por Nicole Brenez), meticulosamente costurados em processo de composição e decomposição. Intensa liberação de modos e ritmos, dinâmicas e sensações. “Todas as coisas, isto é, todas as imagens, se confundem com suas ações e reações: é a variação universal.” O movimento não se distingue do movido e do movente, ele se confunde com o próprio movimento do universo.

De forma geral, cinema como uma simulação simbio-poética, biopoética, isto é: “ciência do sensível”, formas de vida, possíveis. Cinema como estratégia de distribuição das forças do pensamento, do ritmo, do ruído, mas nunca de uma comunicação total. Cinema para além das classificações taxonômicas: proposta para novos clichês: imagem-tempo, imagem-movimento, imagem-fluxo, imagem-total: “toda imagem não passa de um ‘caminho sobre o qual passam em todos os sentidos as modificações que se propagam na imensidão do universo’.” Imagem = movimento (eu mesmo, meu cérebro, uma imagem). Kinoglaz. Cinema político. Godard talvez o mais próximo do Conselho dos Três, Santiago Álvarez…

… estranhamente o mais bressoniano dos cineastas, para quem o cinematógrafo teria o poder de se endereçar de maneira regulável aos sentidos. Godard explora essa premissa com a precisão artesanal dos grandes artistas de oficina (o pintor, o escultor, o fotógrafo), mas criando uma arte do tempo (o cinema, a música) que escoa torrencialmente, mas, ao mesmo tempo, de forma ritmada, pré-determinada por uma lógica musical, uma lógica das intensidades (e não somente do pensamento e do intelecto…). 

As utilização livre dos arquivos remete à “Histoire(s) du Cinema”, manifestando porém alguns procedimentos relativamente novos em seus filmes:

— no plano das imagens: como já se observava a partir de “Elogio do Amor”, trabalho intenso com os registros reguláveis da imagens — coloração, contrastes, saturação, luminosidade. Nota-se também a utilização pictórica muito variada das resoluções dos arquivos, e até o emprego de glitches (se não me engano, uma novidade total);

— no plano da montagem: ritmo ora lento, ora acelarado; grandes processos de decomposição, ecos intersemióticos (o som remetendo parcialmente à imagem, vice versa e aí por diante…); disjunção, cortes abruptos, fades e uma utilização deveras particular da tela preta…;

– no plano do som, suspeito que uma segunda novidade: a espacialização mais radical, que faz girar a cabeça em busca da fonte e, somada à exigência do autor para que algumas frases não fossem traduzidas, produz um tipo de desorientação espacial que intensifica o ritmo dos cortes e variações de tonalidade dos sons e das imagens;

— no plano do texto: frases mais curtas, variação dos tons, das distâncias; a música ressalta o drama, o humor e a desorientação;

— no plano do pensamento: uma “erótica” mais que uma “estética”: filme-pensamento, filme-sensação, mas que não endereça sua fala a alguém ou a um coletivo de forma equânime, pelo contrário: sua intermitência e deslocamentos abruptos constituem sua força de provocação; seu ritmo é político, mas não por conta de uma opinião ou perspectiva específica (no caso, em relação à dissolução do capitalismo, da Europa ou do Mundo Árabe); cinema político porque envolve o sensível, a libido, os músculos, a retina, a dúvida, os aglomerados, a polícia, a violência.

A organização por capítulos também deixa transparecer a necessidade de fazer uma genealogia do presente usando não as imagens do cinema ou o dispositivo audiovisual, mas as prerrogativas de uma arte por ser inventada: “Quando um século se dissolve lentamente no século seguinte, alguns indivíduos transformam os meios de sobrevivência em novos meios. É a este último que chamamos arte.”

Godard se declara admirador da resistência, por bombas, que seja… uma arte, porém, que conhece seus limites, que manifesta uma consciência de seus limites, que percebe os imites da própria representação, que não transforma diretamente as mazelas do mundo pois pensa e age nos limites de sua presença e ação; Cinema político sem aspas porque dissemina um maquinário de dispositivos capazes de encaminhar “outras formas de vida” — será? ele parece se perguntar nos comoventes minutos finais.

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Bernardo Oliveira Escrito por:

Professor de filosofia da Faculdade de Educação/UFRJ, crítico musical e pesquisador.

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