A gente se encontra na rua

Boa noite pra quem chegou
Boa noite pra quem vai chegar
Peço licença ao senhor
Dono desta casa pra poder entrar

Alegria e gratidão de fazer parte desse espaço que faz um contraponto fundamental nos atuais dias de golpe da nossa nação.

O que normalmente registro em palavras escritas está muito ligado ao meu movimento pessoal e ao meu momento atual. E também à crença de que pode fazer eco no outro e por isso voltar pra mim, se potencializar e tornar-se de todos.

Aqui, para Outros Críticos, também sigo esse impulso.

O que esta mexendo comigo agora é o que posso fazer com o que faço.
O que faço é importante para o que é necessário hoje?
Se não é importante, preciso fazer outra coisa.
Se é importante, agora é que tenho que fazer.

Meu fazer se expressa através do meu corpo. Se manifesta em movimento e som.
E acontece diretamente entre a minha presença e a sua em algum espaço físico. Onde?

É nessa resposta que está uma chave importante. Mais do que nunca, sinto que precisa acontecer na rua. Em nome da segurança, essa perversa lógica da segregação dos espaços públicos da cidade entre os que podem pagar e os que não podem vem prevalecendo e configurando nossa cidade. Pior, vem deixando sem espaços públicos parte significativa das pessoas que moram nela.

E a razão maior disso tudo é não misturar mesmo. Porque é na mistura dos encontros que mora a possibilidade de uma visão de mundo mais ampla e mais inclusiva. É nesse encontro de realidades diferentes que está a percepção das incoerências. Como você vai pensar em algo que você nunca viu, não conhece e nunca percebeu?

E é aí onde entra o fazer artístico. Ele permite o encontro. E quando acontece na rua ele permite o encontro das diferenças sociais e econômicas. E quando ele é através do corpo, do suor, do festivo, ele traz alegria, limpa. Quando é renovador e revigorante, como a dança, a música e a poesia possibilitam, ele torna-se instrumento de ampliação da percepção de quem somos e do lugar onde vivemos. Torna-se instrumento político. É um fazer que desentope, que elucida, que revitaliza. E por isso amplia nossa visão, nossa percepção.

No meu entender, melhor seria sem álcool e sem maconha, porque abriríamos mais possibilidades de percepção. Estamos falando de consciência, de visão de mundo. Ver o que não estamos vendo, para não permitir o que estamos permitindo. Sinto que o álcool, a maconha ou qualquer outro fazedor de barato não colaboram com essa ampliação. Em um primeiro momento pode parecer que sim, mas eles amortizam, distraem e sujam, nos tiram do nosso próprio corpo. E sinto que é só quando estamos conscientes e presentes no corpo, que esse corpo pode se tornar canal para a alegria que amplia e nos conecta com quem somos, nossa potência.

O que trago com essas reflexões não são fruto de estudos científicos e nem de valores pessoais, familiares ou religiosos. Vem através das minhas próprias experiências corporais dançando e tocando na rua.

Qualquer fazer artístico tem força política. Qualquer arte pode mexer no cotidiano. Pode nos tirar do automático e fazer a gente ver que a vida é mais do que pagar contas. Falo do fazer artístico de um modo geral, mas é importante falar também de um jeito de fazer música e dança mais específico. Jeito que venho estudando há mais de 20 anos nas tradições populares de que efetivamente participo: o Cavalo Marinho e o Maracatu Rural.

Jeito que percebi inicialmente fazendo. Em seguida, com as instigantes solicitações de transmitir para pessoas de outros contextos, fui me interessando e aos poucos formatando os princípios que regem esse jeito de fazer. Fui vendo que existe ali uma pulsação regular identificável, que se repete, que faz a gente se superar, que nos dilata corporalmente e energeticamente e que traz uma potente renovação de energia. Princípios que trazem uma alegria mais profunda, e essa alegria nos coloca na presença, no aqui e no agora e faz a gente se conectar com a gente mesmo.

“[…] em 2000 criei o Boi Marinho, uma brincadeira de rua que se utiliza da figura conhecida do Boi, de toadas e coreografias do Cavalo Marinho e de muitas outras dinâmicas que fui descobrindo, reproduzindo e inventando.” – Helder Vasconcelos
Para vivenciar ainda mais esses princípios e participar de forma mais pessoal das festividades do Carnaval, em 2000 criei o Boi Marinho, uma brincadeira de rua que se utiliza da figura conhecida do Boi, de toadas e coreografias do Cavalo Marinho e de muitas outras dinâmicas que fui descobrindo, reproduzindo e inventando.

É com o Boi Marinho que vivencio mais intensamente a experiência de criar as circunstâncias para experimentar e proporcionar pro outro os efeitos de fazer algo, através do corpo, da música e da dança, que segue esses princípios. E é nessa experiência que confirmo a potência de estar na presença desse fazer, sentindo o corpo dilatar, suar, expandir e ganhar energia. Exige empenho, mas é algo muito simples. O grupo é aberto e sem pré-requisitos, recebe novos participantes a cada ano. Os retornos que me chegam são muito preciosos. E é essa experiência que também me faz perceber o quanto isso nos coloca na nossa própria força e por isso é tão efetivo como instrumento político.

O argumento da segurança, usado pelos que se beneficiam dessa segregação não tem nenhum valor. O que traz segurança é a ocupação. A ocupação interna inicialmente. Você se preencher com sua própria presença. Ocupar o seu próprio corpo, não se deslocar dele. Depois com as pessoas existindo nos espaços. Ficar em casa pra se sentir seguro é uma ilusão. Nossa casa é nosso corpo e nossa cidade. É nos espaços públicos que nos encontramos e podemos nos conhecer. É nos conhecendo que nos entendemos. E é nos entendendo que nos transformamos, nos aceitamos, nos fortalecemos e evoluímos.

Ocupar! Resistir! Existir!

A arte tem como contribuir. Possivelmente seja uma das maneiras mais eficientes.

Vamos em frente!!!

Fotos: Boi Marinho por Ricardo Moura.

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Helder Vasconcelos Escrito por:

Músico, ator e dançarino e um dos fundadores do grupo musical Mestre Ambrósio. Em carreira solo criou os espetáculos “Espiral Brinquedo Meu”, “Por Si Só e “Eu Sou”. É fundador e coordenador do grupo Boi Marinho e junto com a Batebit Artesania Digital, desenvolveu dois instrumentos digitais de música e dança. No cinema, atuou nos longas “Baile Perfumado”, “O Homem que Desafio o Diabo” e “A Luneta do Tempo”. Também desenvolve um trabalho de formação, atua na criação de trilhas sonoras e como consultor, preparador, diretor e palestrante.

2 Comentários

  1. José Maria de Souza
    22 de março de 2017
    Responder

    Muito bom mesmo!!!! Sucesso nessa nova empreitada Mestre Hélder. Talento tem de sobra!!! Os espaços sempre foram muito bem aproveitados por você e nessa contínua luta em defesa por muito mais, sua voz ecoa mais forte!!!

  2. Valeria Barros
    28 de março de 2017
    Responder

    Boa noite pra quem chegou
    Boa noite pra quem vai chegar
    Peço licença ao senhor
    Dono desta casa pra poder entrar Fantástico eu vi ouvir senti a pureza da Arte da simplicidade um talento fundamental para nossa juventude tão carente da pura Arte do Amor do respeito da dignidade ?

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