A Gente Se Encontra na Gente Mesmo

Apresento agora meu último texto desta série voltada à reflexão dos encontros.

No primeiro, apresentei o espaço onde esses encontros podem e precisam acontecer: a rua. No segundo, mostrei uma forma: a pulsação. Aquilo que antecede o ritmo, os passos e que faz parte da nossa natureza humana. Agora trago o desafio maior, que é falar do encontro fundamental: o encontro com nós mesmos.

O encontro com nós mesmos é o encontro com nossa parte interior. Muitas são as camadas possíveis desse encontro, mas já começa a acontecer simplesmente quando prestamos atenção à parte interna do nosso corpo.

Se não praticamos essa atenção, muito rapidamente percebemos o quanto é difícil mantê-la. Uma forma bastante utilizada por muitas técnicas pra segurar essa atenção é focar na respiração. Só com esse simples exercício já é possível perceber para onde estamos direcionando nossa atenção.

Trabalhando nas minhas oficinas com a dança do “Mergulhão”, que faz parte da tradição do Cavalo Marinho, pude perceber uma dificuldade que aparece quase sempre. Nessa dança, que acontece em roda, uma pessoa sai do seu lugar e escolhe uma outra. Quando essa escolha é feita, a decisão de escolha passa a ser dessa pessoa que foi escolhida, que pode continuar com ela ou já escolher uma outra. Toda essa dinâmica é feita dentro de um tempo marcado pelo ritmo. Por incrível que pareça, a maior dificuldade está em um movimento inicial que tem que acontecer no próprio lugar da pessoa que está na decisão de escolha. E a dificuldade não é o movimento em si, mas é ter que fazer esse movimento no seu lugar, porque na grande maioria das vezes, a pessoa já parte para o encontro antes desse movimento no seu lugar.

Isso é muito sutil, mas bastante significativo, porque esse movimento que precisa ser feito no próprio lugar, que é simplesmente pular com os dois pés, antes de sair pra roda, me parece ser uma espécie de afirmação do “seu eu”, do “seu lugar”. E faz todo sentido ser assim, porque para encontrar com alguém a gente precisa ser um alguém. Precisamos ser aquele que vai encontrar. E para ir até o lugar do outro precisamos saber onde é o nosso lugar. Essa dificuldade de compreensão, de que é necessário primeiro afirmar o “seu eu” e o “seu lugar” antes de sair ao encontro do outro, e a ansiedade desse encontro, faz a gente se perder de nós mesmos.

Um outro ponto importante dos encontros, é entender que todo encontro com o outro é para trazer algo para nós mesmos que precisa ser ativado, acordado, absorvido ou despertado. Tanto aquilo que admiramos, quanto aquilo de que não gostamos. Como esses aspectos estão em uma parte interna de nós muito bem protegida, porque foram guardados por um instinto de sobrevivência, muito provavelmente por algo que aconteceu na nossa infância, seria muito difícil esse despertar sem o encontro com o outro.

Esse seria o ponto chave dos encontros. Despertar em nós o encontro com nós mesmos. E é muito bonito perceber que a cada passo que damos em direção a esse encontro pessoal com nós mesmos, ampliamos as possibilidades de outros encontros internos pessoais acontecerem, porque nós também somos o despertar pessoal do outro. É no outro que eu sou e é em mim que o outro é.

É bonito também perceber que a cada camada de encontro que eu consigo fazer com essa parte interior, algo se expande em mim e permite um novo encontro. Se minha atenção para o que está fora de mim não acontece como consequência desse encontro interior, o encontro com o outro estará sempre em falta. O aspecto do outro que incomoda estará sempre mais latente porque está avisando que eu não olhei para o que está faltando em mim. Mas quando vai acontecendo à medida que vou fazendo os meus encontros interiores, vamos nos aproximando de encontros mais compreensivos, mais amorosos e também mais agradáveis e felizes.

Talvez o medo seja o maior desafio desse encontro interior, porque temos que lidar com aspectos de nós mesmos que acreditamos precisar esconder. A falta de treino também é um grande desafio. Não temos o hábito de olhar pra dentro. Não somos treinados para ser felizes. É muito provável que a felicidade traga uma sensação de que não teremos mais o que fazer se formos felizes.

Não escrevo para tentar convencer ninguém, mas porque faz sentido pra mim que o mundo funcione dessa maneira. E claro, porque também tenho meus medos e minhas buscas.

O que faço então? E como faço? Sempre me vem essas perguntas depois de aceitar e compreender que funciona assim.

Algumas compreensões me ajudam muito. A primeira é a de que não vamos resolver primeiro o medo pra depois buscar o encontro com nós mesmos através do outro. O medo vai junto e é nessa caminhada que vamos lidando e aprendendo com o medo e os encontros vão acontecendo.

Uma outra compreensão é a de que tudo existe aqui ao mesmo tempo. E que é tudo uma questão de escolha. Por exemplo: a alegria e a tristeza. Somos treinados a pensar que a alegria só acontece quando a tristeza deixa de existir ou se a tristeza está em mim a alegria não tem como existir. E o que compreendo hoje é de que a alegria e a tristeza coexistem aqui e agora. E eu posso escolher uma ou outra. E que essa escolha de uma não nega a existência da outra.

Por fim, a minha mais recente compreensão é a de que não temos como fugir da experiência que precisamos passar. Não tem como trocar. Só passamos por uma experiência quando essa experiência passa por nós. Se isso traz um peso por um lado, tem um outro lado que me diz que o que precisamos fazer é viver.

E essa escolha de viver é preciso fazer todos os dias. É assim que vamos encontrar o outro que vai nos mostrar o que estamos precisando para nos encontrar, para ser o que somos. Então Viva!!! Viva!!!

Imagem: Espetáculo “Eu Sou” – foto: Ricardo Moura

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Helder Vasconcelos Escrito por:

Músico, ator e dançarino e um dos fundadores do grupo musical Mestre Ambrósio. Em carreira solo criou os espetáculos “Espiral Brinquedo Meu”, “Por Si Só e “Eu Sou”. É fundador e coordenador do grupo Boi Marinho e junto com a Batebit Artesania Digital, desenvolveu dois instrumentos digitais de música e dança. No cinema, atuou nos longas “Baile Perfumado”, “O Homem que Desafio o Diabo” e “A Luneta do Tempo”. Também desenvolve um trabalho de formação, atua na criação de trilhas sonoras e como consultor, preparador, diretor e palestrante.

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