A exceção e a regra, a exceção na regra. Apontamentos sobre estética e política.

Je vous salue, Sarajevo – JL Godard (1993) from Taller 2 – CCOM – UBA on Vimeo.

por Angela Prysthon.

Há pouco mais de vinte e um anos, Jean Luc Godard realizou um pequeno filme, Je vous salue Sarajevo (1993), uma reflexão sobre a cultura europeia, sobre os nacionalismos e mais especificamente sobre a guerra da Bósnia, a partir de uma foto de guerra de Ron Haviv. O filme trazia à tona também uma oposição muito marcada entre arte e cultura, como se pode perceber no texto (lido pelo próprio Godard) que acompanha as imagens (ângulos distintos, aproximações e distanciamentos dessa mesma foto, além de uma imagem em preto e branco de uma mulher de cabeça baixa que fecha o filme):

“De certa forma, o medo é o filho de Deus, redimido na noite de sexta-feira. Ele não é belo, é zombado, amaldiçoado e renegado por todos. Mas não entenda mal, ele cuida de toda agonia mortal, ele intercede pela humanidade. Pois há uma regra e uma exceção. Cultura é a regra. E arte a exceção. Todos falam a regra: cigarro, computador, camisetas, TV, turismo, guerra. Ninguém fala a exceção. Ela não é dita, é escrita: Flaubert, Dostoiévski. É composta: Gershwin, Mozart. É pintada: Cézanne, Vermeer. É filmada: Antonioni, Vigo. Ou é vivida, e se torna a arte de viver: Srebenica, Mostar, Sarajevo. A regra quer a morte da exceção. Então a regra para a Europa Cultural é organizar a morte da arte de viver, que ainda floresce. Quando for hora de fechar o livro, eu não terei arrependimentos. Eu vi tantos viverem tão mal, e tantos morrerem tão bem.”¹

Trata-se de um exercício de contemplação da fotografia original, da investigação e problematização dessa imagem, que busca na exploração do visível dar conta daquilo que resiste à visibilidade. Mas, em vários sentidos, é mais um estudo sobre as conexões entre a arte e política do que propriamente um discurso sobre a guerra ou mesmo sobre as peculiaridades daquela fotografia. Nele, Godard afirma a arte como antídoto contra a padronização imposta pela cultura massiva. Assim, a arte estaria no território do dissenso, enquanto a cultura seria a imposição do consenso. Um consenso aplastador, alienante e opressor. Godard sublinha essa separação no esteio de uma concepção estética francamente modernista (e marxista), que liga o sublime ao desvio e à diferença, que opõe a obra de arte à mercadoria. O que nos parece particularmente interessante e de certo modo paradoxal é que essa posição (a defesa do modelo tradicional de “arte crítica”, a adesão ao abismo entre as esferas artísticas e as culturais) se dê num horizonte de experimentação com a imagem que pouco tem a ver com a lógica da separação.

Então, por mais que no seu discurso esteja conclamando a separação entre o mundo cotidiano e o indizível da arte, entre os territórios mais banais da “cultura” (colocada de um modo quase pejorativo) e o lugar não localizável do sublime, a própria forma do filme resiste a essa contraposição. É que, ao interrogar uma fotografia de guerra, ao investigar essa imagem, o filme acaba trazendo para o centro do seu filme a ideia da arte de viver (e de morrer), na qual não faz sentido pensar tanto em separação, mas na ideia de partilha, tal qual a conceitua o filósofo francês Jacques Rancière. Pois, o Godard de Je vous salue Sarajevo nos parece guardar sim muitas correspondências com os escritos de Rancière, que em diversas obras se dedicou a repensar a relação entre estética e política fora dos modelos estabelecidos pela tradição marxista, pela Escola de Frankfurt ou pelas leituras pós-estruturalistas. A noção de partilha do sensível é justamente a base a partir da qual pensar não apenas a inscrição da política na arte ou uma reformulação sobre a estetização da política, mas sobretudo o que há de comum entre as duas esferas. Essa concepção aponta sempre para a dupla acepção do termo (como divisão e como distribuição), nesse sentido trazendo à tona uma dimensão paradoxal na qual são imprescindíveis o encontro e a divergência (sendo mais preciso até pensar na ideia de encontro na divergência), uma possibilidade de igualdade na afirmação da diferença.

“[…] é evidente que a própria noção de arte política (ou arte crítica) tenha que ser ressignificada para além da “arte engajada”, para além do panfleto, para além de modelos ‘pedagógicos'”

Assim, parece-nos possível rever Je vous salue Sarajevo fazendo algumas torções, reparos e acréscimos e recolocar o debate sobre a política na arte e a arte na política em termos menos binários. Pensar a forma desse filme como um elemento efetivamente desestabilizador dos sentidos mais imediatos do seu próprio texto, por exemplo. Pensar como mesmo a partir da regra é possível vislumbrar a crítica. Ver que mesmo no campo dos produtos culturais mais banais vai sendo revelada a possibilidade do dissenso. É este um dos paradoxos que residem no coração do debate sobre estética e política. Então, é evidente que a própria noção de arte política (ou arte crítica) tenha que ser ressignificada para além da “arte engajada”, para além do panfleto, para além de modelos “pedagógicos”.

Um autor como Homi Bhabha, por exemplo, também superando a dicotomia arte/cultura, vê nas formas culturais não canônicas a transformação efetiva das estratégias críticas e das leituras estéticas. Para ele as formações estéticas elaboradas dentro de uma situação de marginalidade social nos forçam a:

“encarar o conceito de cultura exteriormente aos objets d’art, ou para além da canonização da ideia de estética, a lidar com a cultura como produção irregular e incompleta de sentido e de valor, frequentemente composta de demandas e práticas incomensuráveis, produzidas no ato da sobrevivência social.”²

Ou seja, não se trata de deslocar o que antes estava concentrado na ideia da arte engajada para o terreno da cultura marginalizada e periférica, mas, ao recusar a canonização da estética (restrita ao elogio do sublime clássico ou do desvio modernista) estende os próprios limites da estética (para o social, para o cotidiano, para a política, para a arte de viver, como propôs Godard, para a exceção). De novo, Rancière nos parece particularmente relevante para a compreensão de uma virada estética da política ou da política da estética:

“Se existe uma conexão entre arte e política, ela deve ser colocada nos termos do dissenso, o próprio cerne do regime estético: obras de arte podem produzir efeitos de dissenso precisamente porque elas nem dão lições, nem têm um alvo.”³

É nesse horizonte da obra sem lições a serem aprendidas ou sem uma meta a ser alcançada que está não apenas a arte política do que Rancière chama de regime estético ou a subjetivação da política, mas também a noção sugerida pelo título desse texto, de que sim há a regra e há a exceção, mas que mesmo dentro da regra é possível haver exceção. Nessa trilha, é possível recuperar toda uma tradição de pensamento (em diversos campos) que tenta ler a contrapelo as práticas e formações criativas. Uma tradição que escolhe firmemente não rejeitar o mundo da cultura, não isolá-lo, nem opô-lo diametralmente ao mundo da arte. oc

___________________

¹ ALMEIDA, Edu. Cultura é a regra, arte é a exceção, Arte faz parte, 2011.

² BHABHA, Homi K.. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.

³ RANCIÈRE, Jacques. Dissensus. On Politics and Aesthetics. Londres: Continuum, 2010.

 Publicado originalmente na 6ª edição da revista Outros Críticos.

 

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Angela Prysthon Escrito por:

Professora do Bacharelado em Cinema e do Programa de pós-graduação em Comunicação da UFPE.

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